"OMNES ET SINGULATIM"
para uma crítica da razão política
Michel Foucault
(Tradução de Selvino J. Assmann)
I
O título parece pretensioso, eu sei. Mas a razão é neste caso precisamente sua própria desculpa. Após o século XIX, o pensamento ocidental nunca parou de insistir em criticar o papel da razão - ou da falta de razão - nas estruturas políticas. Por isso é totalmente inconveniente lançar-se mais uma vez em tão vasto projeto. A própria freqüência das tentativas anteriores é, assim, a garantia de que todo novo empreendimento será tão coroado de sucesso quanto os precedentes - e, seja como for, provavelmente tão feliz.
Eis-me, desde o início, no embaraço de quem não dispõe senão de esboços e de bosquejos inacabáveis a propor. Em tempos que já lá se vão, a filosofia renunciou a buscar compensar a impotência da razão científica, a ponto de nem tentar completar seu edifício.
Uma das tarefas das Luzes era a de multiplicar os poderes políticos da razão. Mas os homens do século XIX chegaram bem cedo a perguntar-se se a razão não estava destinada a tornar-se demasiado potente em nossas sociedades. Começaram a inquietar-se com a relação que eles divisavam entre uma sociedade inclinada à racionalização e certas ameaças ameaçando o indivíduo e suas liberdades, a espécie e sua sobrevivência.
Dito de outra forma, depois de Kant, o papel da filosofia foi o de impedir a razão de superar os limites do que é dado na experiência; mas, desde aquela época - ou seja, com o desenvolvimento dos Estados modernos e a organização política da sociedade - o papel da filosofia foi também o de vigiar os abusos de poder da racionalidade política - o que lhe dava uma esperança de vida bastante promissora.
Ninguém ignora tais banalidades. Mas o fato mesmo de que sejam banais não significa que não existam. Na presença de fatos banais, cabe-nos descobrir - ou tentar descobrir - os problemas específicos e talvez originais que estão relacionados com os mesmos.
A ligação entre a racionalização e os abusos do poder político é evidente. E ninguém precisa esperar a burocracia ou os campos de concentração para reconhecer a existência destas relações. Mas o problema é então de saber o que fazer com um dado tão evidente.
Movamos o "processo" à razão? Na minha opinião, nada seria mais estéril. Antes de mais, porque não se trata nem de culpabilidade nem de inocência neste campo. Depois, porque é absurdo invocar a "razão"" como entidade contrária da não-razão. Por fim, porque tal processo nos colocaria numa armadilha obrigando-nos a jogar o papel arbitrário e chato do racionalista ou do irracionalista.
Vamos indagar esta espécie de racionalismo que parece ser específico de nossa cultura moderna e que remonta às Luzes? Esta, creio eu, é a solução que escolheriam alguns membros da Escola de Frankfurt. Minha intenção não consiste em abrir uma discussão sobre suas obras - e elas são das mais importantes e das mais preciosas. Sugeriria, da minha parte, outra maneira de estudar as relações entre a racionalização e o poder:
É sem dúvida prudente não tratar da racionalização da sociedade ou da cultura como um todo, mas analisar este processo em diversos domínios - cada um deles enraizando-se numa experiência fundamental: loucura, doença, morte, crime, sexualidade, etc.
Considero perigoso o próprio termo racionalização. Quando alguns tentam racionalizar algo, o problema essencial não consiste em pesquisar se eles se conformam ou não aos princípios da racionalidade, mas de descobrir a que tipo de racionalidade eles recorrem.
Mesmo que as Luzes tenham sido uma fase extremamente importante em nossa história e no desenvolvimento da tecnologia política, creio que devemos referir-nos a processos bem mais recuados se quisermos compreender como nos deixamos cair na armadilha da nossa própria história.
Tal foi minha "linha de conduta" no meu precedente trabalho: analisar as relações entre experiências como a loucura, a morte, o crime ou a sexualidade, e diferentes tecnologias do poder. Meu trabalho daqui em frente conduz ao problema da individualidade - ou, deveria eu dizer, da identidade em conexão com o problema do "poder individualizante".
Cada um sabe que, nas sociedades européias, o poder político evoluiu para formas cada vez mais centralizadas. Historiadores estudam esta organização do Estado, com sua administração e sua burocracia, há vários decênios.
Gostaria de sugerir aqui a possibilidade de analisar outra espécie de transformação relativa a estas relações de poder. Tal transformação seja talvez menos conhecida. Mas creio que ela não é de menor importância, sobretudo para as sociedades modernas. Aparentemente tal evolução é oposta à evolução na direção de um Estado centralizado. Penso, de fato, no desenvolvimento das técnicas de poder voltadas para os indivíduos e destinadas a dirigi-los de modo contínuo e permanente. Se o Estado é a forma política de um poder centralizado e centralizador, denominemos "pastorado" (pastorat) o poder individualizador.
Meu propósito consiste aqui em apresentar em grandes traços a origem desta modalidade pastoral do poder, ou pelo menos alguns aspectos de sua história antiga. Em uma segunda conferência, tentarei mostrar como este pastorado se encontrou associado ao seu contrário, o Estado.
A idéia de que a divindade, o rei ou o chefe é um pastor seguido de um rebanho de ovelhas não era familiar aos gregos e aos romanos. Houve exceções, eu sei - inicialmente na literatura homérica, depois em certos textos do Baixo Império. Voltarei a isso em seguida. Grosseiramente falando, podemos dizer que a metáfora do rebanho está ausente dos grandes textos políticos gregos ou romanos.
Este não é o caso nas sociedades orientais antigas, no Egito, na Assíria e na Judéia. O faraó egípcio era um pastor. No dia de sua coroação ele recebia ritualmente o cajado do pastor; e o monarca da Babilônia tinha direito, entre outros títulos, ao de "pastor dos homens". Mas Deus era também um pastor conduzindo os homens à sua pastagem e alcançando seu alimento. Um hino egípcio invocava Rê da sorte: "Oh Rê que vigia quando todos os homens cochilam, Tu que buscas o que é bom para o teu gado...". A associação entre Deus e o rei aparece naturalmente, pois ambos jogam o mesmo papel: o rebanho que eles vigiam é o mesmo; o pastor real tem a guarda das criaturas do grande pastor divino. "Ilustre companheiro de pastagem, Tu que cuidas da tua terra e a nutres, pastor de toda abundância...".
Como sabemos, porém, são os Hebreus que desenvolvem e ampliam o tema pastoral - com nada menos do que uma característica muito singular: Deus, e só Deus, é o pastor de seu povo. Só há uma exceção positiva: em sua qualidade de fundador da monarquia, David é invocado sob o nome de pastor. Deus confiou-lhe a tarefa de reunir um rebanho.
Há, porém, também exceções negativas: os maus reis são uniformemente comparados a maus pastores; eles dispersam o rebanho, deixam-no morrer de fome, não o tosquiam a não ser em proveito próprio. Javé é o único verdadeiro pastor. Ele guia seu povo pessoalmente, ajudado apenas por seus profetas. "Como um rebanho, tu guias teu povo pela mão de Moisés e de Aarão", diz o salmista. Eu não posso tratar, na verdade, nem dos problemas históricos relativos à origem desta comparação nem de sua evolução no pensamento judeu. Desejo apenas abordar alguns temas típicos do poder pastoral. Gostaria de evidenciar o contraste com o pensamento político grego, e mostrar a importância que adquiriram depois tais temas no pensamento cristão e nas instituições.
O pastor exerce o poder sobre um rebanho mais do que sobre uma terra. É provavelmente bem mais complicado do que isso, mas, de modo geral, a relação entre a divindade, a terra e os homens difere daquela dos gregos. Os deuses destes possuíam a terra, e esta posse original determinava as relações entre os homens e os deuses. No outro caso, é, pelo contrário, a relação do Deus-pastor com seu rebanho que é original e fundamental. Deus dá, ou promete, uma terra ao seu rebanho.
O pastor reúne, guia e conduz seu rebanho. A idéia de que cabe ao chefe político apaziguar as hostilidades na cidade e fazer prevalecer a unidade sobre o conflito está, sem nenhuma dúvida, presente no pensamento grego. Mas o que o pastor reúne são indivíduos dispersos. Eles reúnem-se ao som de sua voz. "Eu assobiarei e eles se ajuntam". Inversamente, basta que o pastor desapareça para que o rebanho se disperse. Dito doutra maneira, o rebanho existe pela presença imediata e pela ação direta do pastor. Logo que o bom legislador grego, Sólon, regulamentou os conflitos, ele deixa atrás de si uma cidade dotada de leis que lhe permitem perdurar sem ele.
O papel do pastor consiste em assegurar a salvação de seu rebanho. Os gregos diziam também que a divindade salvava a cidade; e eles nunca deixaram de comparar o bom chefe a um timoneiro mantendo seu navio afastado dos recifes. Mas a maneira em que o pastor salva seu rebanho é muito diferente. Não se trata apenas de os salvar a todos, todos juntos, diante da aproximação do perigo. Tudo é questão de benevolência constante, individualizada e final. De benevolência constante, pois o pastor provê ao sustento de seu rebanho; ele provê diariamente à sua sede e à sua fome. Ao deus grego era pedido uma terra fecunda e colheitas abundantes. Não se pedia a ele estar com o rebanho no dia a dia. E de benevolência individualizada, também, pois o pastor cuida para que todas estas ovelhas, sem exceção , sejam saciadas e salvas. Depois, os textos hebraicos especialmente ressaltaram este poder individualmente benéfico: comentário rabínico sobre o Êxodo explica porque Javé faz de Moisés o pastor de seu povo: ele devia abandonar seu rebanho a fim de partir em busca de uma só ovelha perdida.
Last but not least, trata-se de uma benevolência final. O pastor tem um plano para seu rebanho. É preciso tanto conduzi-lo a uma boa pastagem, quanto reuni-lo no curral.
Há ainda outra diferença que tem a ver com a idéia de que o exercício do poder é um "dever". O chefe grego devia naturalmente tomar suas decisões no interesse de todos; se preferisse seu interesse pessoal seria um mau chefe. Mas seu dever era um dever glorioso: mesmo que ele devesse dar sua vida por ocasião de uma guerra, seu sacrifício era compensado por um presente extremamente precioso: a imortalidade. Ele nunca perdia. A benevolência pastoral, por sua vez, é bem mais próxima do "devotamento". Tudo que o pastor faz, ele o faz pelo bem de seu rebanho. É sua preocupação constante. Quando ele dorme, ele vigia.
O tema da vigília é importante. Vale destacar dois aspectos do devotamento do pastor. Em primeiro lugar, ele age, trabalha e desfaz-se em favor daqueles a quem nutre e que estão adormecidos. Em segundo lugar, ele cuida deles. Presta atenção a todos, sem perder de vista ninguém dentre os mesmos. Ele é levado a conhecer seu rebanho no conjunto e em detalhe. Ele deve conhecer não apenas o lugar das boas pastagens, as leis das estações e a ordem das coisas, mas também as necessidades de cada um em particular. Mais uma vez, um comentário rabínico sobre o Êxodo descreve, nos seguintes termos, as qualidades pastorais de Moisés: ele põe a andar cada ovelha por vez - primeiro as mais jovens, para lhes possibilitar comer a erva mais tenra; depois as de mais idade, e por fim as mais velhas, capazes de mastigar a erva mais dura. O poder pastoral supõe atenção individual a cada membro do rebanho.
Eis aí temas que os textos hebraicos associam às metáforas do Deus-pastor e do seu povo-rebanho. Não pretendo de modo algum que o poder político se exercia efetivamente assim na sociedade judaica antes da queda de Jerusalém. Nem mesmo quero que esta concepção do poder político seja, por pouco que fosse, coerente.
Trata-se apenas de temas. Paradoxais, e até contraditórios. O cristianismo lhes daria importância considerável, tanto na Idade Média, quanto nos Tempos modernos. De todas as sociedades da história, as nossas - quero dizer, aquelas que apareceram no final da Antigüidade no lado ocidental do continente europeu - são talvez as mais agressivas e as mais conquistadoras; elas foram capazes da violência mais estupefaciente, contra elas mesmas assim como contra as outras. Elas inventaram grande número de formas políticas diferentes. Com freqüência, modificaram profundamente suas estruturas jurídicas. É necessário sublinhar o espírito (com) que só elas desenvolveram uma estranha tecnologia do poder, tratando a imensa maioria dos homens em rebanho com um punhado de pastores. Assim elas estabeleceram entre os homens uma série de relações complexas, contínuas e paradoxais.
É seguramente algo singular no curso da história. O desenvolvimento da "tecnologia pastoral" na direção dos homens transformou, com toda evidência, de alto abaixo, as estruturas da sociedade antiga.
Assim, a fim de explicar melhor a importância desta ruptura, gostaria agora de voltar brevemente ao que disse dos gregos. Adivinho as objeções que se podem dirigir a mim.
Uma é que os poemas homéricos empregam a metáfora pastoral para designar os reis. Na Ilíada e na Odisséia, a expressão poimên laôn aparece várias vezes. Designa os chefes e sublinha a grandeza do seu poder. Acrescente-se a isso que se trata de título ritual, freqüente até na literatura indo-européia tardia. Em Beowulf, o rei é ainda considerado como pastor. Mas que se encontre o mesmo título nos poemas épicos arcaicos, assim como nos textos assírios, não é realmente surpreendente.
O problema põe-se sobretudo no que diz respeito ao pensamento grego; ha pelo menos uma categoria de textos que comporta referências aos modelos pastorais: trata-se dos textos pitagóricos. A metáfora do pastor (pâtre) aparece nos Fragmentos de Arquitas, citados por Stobée. O termo nomos (a lei) está ligado ao termo nomeus (pastor): o pastor reparte, a lei designa. E Zeus é denominado Nomios e Némeios porque provê ao sustento das suas ovelhas. Enfim, o magistrado deve ser philanthrôpos, a saber, desprovido de egoísmo. Ele deve mostrar-se cheio de ardor e de solicitude, tal como um pastor.
Gruppe, o editor alemão dos Fragments de Arquitas, sustenta que isso sinaliza uma influência hebraica única na literatura grega. Outros comentaristas, por exemplo Delatte, afirmam que a comparação entre os deuses, os magistrados e os pastores era freqüente na Grécia. Por isso, é inútil insistir nisso.
Ater-me-ei à literatura política. Os resultados da pesquisa são claros: a metáfora política do pastor nem em Isócrates, nem em Demóstenes, nem em Aristóteles. É bastante surpreendente quando se pensa que, no seu Areopagítico, Isócrates insiste nos deveres dos magistrados: ele sublinha com força que eles devem mostrar-se devotados e se preocupar com os jovens. Não há, no
caso, a mínima alusão pastoral.
Platão, por sua vez, fala muitas vezes do pastor-magistrado. Ele evoca a idéia no Crítias, na República, e em As Leis, e discute-o a fundo em O Político. Na primeira obra, o tema do pastor é bastante secundária. Encontram-se às vezes, no Crítias, algumas evocações destes dias felizes em que a humanidade era diretamente governada pelos deuses e era apascentada em abundantes pastagens. Outras vezes, Platão insiste na necessária virtude do magistrado - em oposição ao vício de Trasímaco (República). Por fim, o problema é às vezes o de definir o papel subalterno dos magistrados: na verdade, assim como os cães de guarda, eles não devem senão obedecer àqueles "que se encontram no alto da escala" (As Leis).
Mas, em O Político, o poder pastoral é o problema central e objeto de longos desenvolvimentos. Pode-se definir o condutor da cidade, o comandante, como uma espécie de pastor?
A análise de Platão é bem conhecida. Para responder a esta pergunta, ele procede por divisão. Estabelece distinção entre o homem que transmite ordens às coisas inanimadas (por exemplo, o arquiteto) e o homem que dá ordens aos animais; entre o homem que dá ordens aos animais isolados ( a uma junta de bois, por exemplo) e quem comanda rebanhos; e, por fim, entre quem comanda rebanhos de animais e quem comanda rebanhos humanos. E encontramos aqui o chefe político: um pastor de homens.
Mas esta primeira divisão continua pouco satisfatória. Convém ir mais adiante. Opor os homens a todos os outros animais não é bom método. Também o diálogo parte de zero para propor de novo uma série de distinções: entre os animais selvagens e os animais domésticos; os que vivem nas águas e os quem vivem sobre a terra; os que têm chifres e os que não os têm; os que têm o chifre do pé rachado e os que o têm de uma só parte; os que podem reproduzir-se por cruzamento e os que não o podem. E o diálogo perde-se em suas intermináveis subdivisões.
Então, o que mostram o desenvolvimento inicial do diálogo e seu insucesso subseqüente? Que o método da divisão não pode ao final provar nada quando não é corretamente aplicado. Isso mostra também que a idéia de analisar o poder político como a relação entre um pastor e seus animais era provavelmente bastante controversa na época. De fato, é a primeira hipótese quem vem à mente dos interlocutores quando eles buscam descobrir a essência do político. Era isso então um lugar comum? Ou Platão discutia antes um tema pitagórico? A ausência da metáfora pastoral nos outros textos políticos contemporâneos parece jogar a favor da segunda hipótese. Mas não podemos provavelmente deixar a discussão aberta.
Minha pesquisa pessoal conduz ao modo como Platão trata este tema no resto do diálogo. Inicialmente ele o faz por meio de argumentos metodológicos, depois invocando o famoso mito do mundo que gira em torno do seu eixo.
Os argumentos metodológicos são muito interessantes. Não é decidindo sobre quais espécies podem formar um rebanho, mas analisando o que faz o pastor que se pode dizer se o rei é ou não uma espécie de pastor.
O que caracteriza sua tarefa? Primeiramente, o pastor está sozinho à cabeça do seu rebanho. Em segundo lugar, seu trabalho consiste em prover ao sustento de seus animais; de cuidar deles quando estão doentes; de lhes tocar a música para os reunir e os guiar; de organizar sua reprodução com a preocupação de obter a melhor primogenitura. Assim reencontramos da melhor forma os temas típicos da metáfora pastoral presentes nos textos orientais.
E qual a tarefa do rei a respeito de tudo isso? Como o pastor, ele está só à testa da cidade. Mas, de resto, quem fornece à humanidade seu sustento? O rei? Não. O cultivador, o padeiro. Quem se ocupa dos homens quando estão enfermos? O rei? Não. A medicina. E quem os guia pela música? O mestre do ginásio, e não o rei. Assim, cidadãos poderiam com muita legitimidade pretender o título de "pastor dos homens". A política, assim como o pastor do rebanho humano, conta com numerosos rivais. Conseqüentemente, se quisermos descobrir o que é real e fundamentalmente o político, devemos descartar dele "todos aqueles cuja onda o cerca", e, fazendo isso, demonstrar em que ele não é um pastor.
Platão recorre então ao mito do universo girando em torno do seu eixo em dois movimentos sucessivos e de sentido contrário.
Num primeiro tempo, cada espécie animal pertence a um rebanho conduzido por um gênio-pastor. O rebanho humano era conduzido pela divindade em pessoa. Ele podia dispor em profusão dos frutos da terra; não precisava de abrigo algum; e, após a morte, os homens voltavam à vida. Segue-se uma frase capital: "Se a divindade fosse seu pastor, os homens não teriam necessidade de constituição política".
Num segundo tempo, o mundo voltou na direção oposta. Os deuses já não foram os pastores dos homens, que se reencontrarão desde então abandonados a si mesmos. Porque eles tinham recebido o fogo. Qual seria então o papel do político? Iria ele tornar-se pastor no lugar da divindade? De modo algum. Seu papel seria já o de tecer um tecido sólido para a cidade. Ser homem político não queria dizer alimentar, cuidar e educar sua primogenitura, mas urdir: urdir diferentes virtudes; urdir temperamentos contrários (fogosos ou moderados), servindo-se da "lançadeira" da opinião pública. A arte régia de governar consistia em reunir os vivos "numa comunidade que repousa sobre a concórdia e a amizade", e formando assim "o mais magnífico e o melhor dos tecidos". Todo o povo, "escravos e homens livres, retidos em sua trama".
O Político aparece, portanto, como a reflexão mais sistemática da Antigüidade clássica sobre o tema do pastorado, que era chamada a ter tanta importância no Ocidente cristão. Que o discutamos parece provar que um tema, de origem oriental talvez, era suficientemente importante no tempo de Platão para merecer discussão; mas não esqueçamos que ele era contestado.
Mas não totalmente. Pois Platão reconhecia claramente no médico, no cultivador, no ginasta e no pedagogo a qualidade de pastores. Por sua vez, rejeitava que se misturassem com atividades políticas Ele o diz explicitamente: como poderia o político encontrar o tempo para ir ver cada pessoa em particular, para lhe dar de comer, para lhe oferecer concertos, e para cuidar dele em caso de doença? Só um deus da idade de ouro poderia agir deste modo; ou ainda como um médico ou um pedagogo, ser responsável pela vida e pelo desenvolvimento de um pequeno número de indivíduos. Mas, situados entre os deuses - os deuses e os pastores - os homens que detêm o poder político não são pastores. Sua tarefa não consiste em manter a vida de um grupo de indivíduos. Consiste, sim, em formar e garantir a unidade da cidade. Em breve, o problema político é o da relação entre o um e a multidão no quadro da cidade e dos seus cidadãos. O problema pastoral tem a ver com a vida dos indivíduos.
Tudo isso parece, talvez, muito longínquo. Se insisto nestes textos antigos é porque nos mostram que este problema - ou antes esta série de problemas - foi posto muito cedo. Cobrem a história ocidental na sua totalidade, e são ainda da maior importância para a sociedade contemporânea. Têm a ver com as relações entre o poder político em ato no interior do Estado enquanto quadro jurídico da unidade e um poder que podemos denominar "pastoral", cujo papel reside em vigiar permanentemente a vida de todos e de cada um, em os ajudar, e melhorar a sua sorte.
O famoso "problema do Estado-providência" não põe apenas em evidência as necessidades ou as novas técnicas de governo do mundo atual. Deve ser reconhecido por aquilo que é: um dos muito numerosos reaparecimentos do delicado ajustamento entre o poder político exercido sobre os sujeitos civis e o poder pastoral que se exerce sobre indivíduos vivos.
Não tenho naturalmente a menor intenção de traçar a evolução do poder pastoral através do cristianismo. Os imensos problemas que isso poria deixam-se imaginar facilmente: problemas doutrinais, tais como o título de "bom pastor" dado a Cristo, problemas institucionais, tais como a organização paroquial, ou a divisão das responsabilidades pastorais entre padres e bispos.
Meu único propósito é o de pôr às claras dois ou três aspectos que considero mais importantes na evolução do pastorado, isto é, na tecnologia do poder.
Para começar, examinemos a construção teórica do tema na literatura cristã dos primeiros séculos: Crisóstomo, Cipriano, Ambrósio, Jerônimo e, para a vida monástica, Cassiano ou Bento. Os temas hebraicos encontram-se consideravelmente transformados pelo menos em quatro planos.
1) Em primeiro lugar, no que diz respeito à responsabilidade. Vimos que o pastor devia assumir a responsabilidade pelo destino do rebanho na sua totalidade e por toda ovelha em particular. Na concepção cristã, o pastor deve prestar contas - não só de cada uma das ovelhas, mas de todas as suas ações, de todo o bem ou o mal que são capazes de realizar, de tudo o que lhes acontece.
Além disso, entre cada ovelha e seu pastor, o cristianismo vê um intercâmbio e uma circulação complexos de pecados e de méritos. O pecado da ovelha é também imputável ao pastor. Ele deverá responder por ele no dia do Juízo final. Inversamente, ajudando seu rebanho a encontrar a salvação, o pastor encontrará também a sua. Mas, salvando suas ovelhas, corre o risco de se perder; se quiser salvar a si mesmo, deve necessariamente correr o risco de estar perdido para os outros. Se ele se perder, é o rebanho que ficará exposto aos maiores perigos. Deixemos, porém, tais paradoxos de lado. Meu objetivo era unicamente o de sublinhar a força e a complexidade das vínculos morais associando o pastor a cada membro de seu rebanho. E sobretudo, gostaria de salientar fortemente que estes vínculos não dizem apenas respeito à vida dos indivíduos, mas também aos seus atos nos seus mais ínfimos detalhes.
2) A segunda alteração importante tem a ver com o problema da obediência (de l'obédience ou de l'obéissance - sic). Na concepção hebraica, se Deus é pastor, o rebanho que o segue submete-se à sua vontade, à sua lei.
O cristianismo, por sua vez, concebe a relação entre o pastor e suas ovelhas como relação de dependência individual e completa. Trata-se certamente de um dos pontos sobre os quais o pastorado cristão diverge radicalmente do pensamento grego. Se um grego tinha que obedecer, ele o fazia porque era a lei, ou a vontade da cidade. Se ele chegava a seguir a vontade de alguém em particular (médico, orador ou pedagogo), é porque tal pessoa o havia racionalmente persuadido a fazê-lo. E isso devia situar-se num desígnio estritamente determinado: curar-se, adquirir uma competência, fazer a melhor escolha.
No cristianismo, o vínculo com o pastor é um vínculo individual, um vínculo de submissão pessoal. A vontade dele é cumprida não porque era conforme à lei, mas principalmente porque tal era a sua vontade. Nas Instituições cenobíticas de Cassiano encontram-se muitas anedotas edificantes nas quais o frade alcança sua salvação cumprindo os mais absurdos mandamentos do seu superior. A obediência é uma virtude. O que quer dizer que não é, como entre os gregos, um meio provisório para alcançar um fim, mas antes um fim em si. É um estado permanente: as ovelhas devem permanentemente submeter-se aos seus pastores: subditi. Conforme declara São Bento, os monges não vivem seguindo seu livre arbítrio; o seu voto é de serem submissos à autoridade do abade: ambulantes alieno judicio et imperio. O cristianismo grego nomeava este estado de obediência de apatheia. E a evolução do sentido deste termo é significativa. Na filosofia grega, apatheia designa o império que o indivíduo exerce sobre suas paixões graças ao exercício da razão. No pensamento cristão, o pathos é a vontade exercida sobre si, e para si. A apatheia nos liberta de tal teimosia.
O pastorado cristão pressupõe uma forma de conhecimento particular entre o pastor e cada uma das ovelhas. Tal conhecimento é particular. Ele individualiza. Não basta saber em que estado se encontra o rebanho. É necessário também conhecer o de cada ovelha. Este tema existia bem antes do pastorado cristão, mas foi consideravelmente ampliado em três sentido diferentes: o pastor deve ser informado das necessidades de cada componente do rebanho, e de satisfazê-las quando é necessário. Ele deve saber o que se passa, o que cada um deles - seus pecados públicos. Last but not least, deve saber o que passa na alma de cada um, conhecer seus pecados secretos, sua progressão no caminho da santidade.
A fim de se garantir tal conhecimento individual, o cristianismo apropriou-se de dois elementos essenciais à obra no mundo helênico: o exame de consciência e a direção de consciência. Ele retoma-os , mas não sem alterá-los profundamente.
O exame de consciência, sabe-se, era comum entre os pitagóricos, os estóicos e os epicuristas, que nele viam um meio de prestar contas cotidianamente sobre o bem e o mal realizado com relação aos seus deveres. Assim, se podia medir sua progressão no caminho da perfeição, ou seja, o domínio de si e o império exercido sobre as próprias paixões. A direção de consciência era também predominante em certos ambientes cultivados, mas tomava então a forma de conselhos dados - e às vezes retribuídos - em circunstâncias particularmente difíceis: na aflição, ou quando se sofria de um golpe de sorte.
O pastorado cristão associou estreitamente estas duas práticas. A direção de consciência constituía uma ligação permanente: a ovelha não se deixava conduzir apenas no caso de caso de enfrentar vitoriosamente algum passo perigoso; ela se deixava conduzir em cada instante. Ser guiado era um estado, e estaria fatalmente perdido no caso de tentar escapar disso. Quem não aceita algum conselho murcharia como folha morta, diz o eterno refrão. Quanto ao exame de consciência, seu objetivo não era o de cultivar a consciência de si, mas de lhe permitir abrir-se inteiramente ao seu diretor - de lhe revelar as profundezas da alma.
Existem muitos textos ascéticos e monásticos do séc. I sobre o vínculo entre a direção e o exame de consciência, e os mesmos mostram a que ponto tais técnicas eram capitais para o cristianismo e qual era já então o seu grau de complexidade. O que gostaria de sublinhar é que as mesmas traduzem o aparecimento de um fenômeno muito estranho na civilização greco-romana, a saber, a organização de um vínculo entre a obediência total, o conhecimento de si e a confissão a alguém, por outro lado.
Há outra transformação - a mais importante, talvez. Todas estas técnicas cristãs de exame, de confissão, de direção de consciência e de obediência têm uma finalidade: levar os indivíduos a trabalhar na sua própria "mortificação" neste mundo. A mortificação não é a morte, certamente, mas renúncia a este mundo e a si mesmo: uma espécie de morte cotidiana. Morte que é considerada por dar a vida no outro mundo. Não é a primeira vez que encontramos o tema pastoral associado à morte, mas seu sentido difere daquele que se dá do poder político na idéia grega. Não se trata de sacrifício em favor da cidade; a mortificação cristã é uma forma de relação para consigo mesmo. É elemento, parte da identidade cristã.
Podemos dizer que o pastorado cristão introduziu um jogo que nem os gregos nem os hebreus haviam imaginado. Estranho jogo cujos elementos são a vida, a morte, a verdade, a obediência, os indivíduos, a identidade; jogo que parece não ter relação alguma com o da cidade que sobrevive através do sacrifício dos seus cidadãos. Combinando estes dois jogos - o jogo da cidade e do cidadão e o jogo do pastor e do rebanho - no que denominamos os Estados modernos, nossas sociedades revelaram-se verdadeiramente demoníacas.
Conforme podem observar, não procurei aqui resolver um problema, mas sugerir uma abordagem deste problema. É da mesma ordem que aqueles sobre os quais trabalho após meu primeiro livro sobre a loucura e a doença mental. Conforme disse anteriormente, tem a ver com as relações entre experiências (tais como a loucura, a doença, a transgressão das leis, a sexualidade,a identidade), saberes (tais como a psiquiatria, a medicina, a criminologia, a sexologia e a psicologia), e o poder (como o poder que se exerce nas instituições psiquiátricas e penais, assim como em todas as outras instituições que tratam do controle individual).
Nossa civilização desenvolveu o mais complexo sistema de saber, as mais sofisticadas estruturas de poder: o que fez de nós tal forma de conhecimento, tal tipo de poder? De que maneira tais experiências fundamentais da loucura, do sofrimento, da morte, do crime, do desejo e da individualidade estão relacionadas, mesmo que não tenhamos consciência disso, com o conhecimento e com o poder? Estou certo de jamais encontrar a resposta; mas isso não deve significar que devamos renunciar a pôr a questão.
II
Procurei mostrar como o cristianismo primitivo deu forma à idéia de uma influência pastoral exercendo-se continuamente sobre os indivíduos e através da demonstração de sua verdade particular. Procurei mostrar como tal idéia de poder pastoral era estranha ao pensamento grego, a despeito de certo número de elementos tais como o exame de consciência prático e a direção de consciência.
Gostaria agora, ao preço de um salto de vários séculos, de descrever outro episódio que se revestiu de importância particular na história deste governo dos indivíduos por sua própria verdade.
Este exemplo tem a ver com a formação do Estado no sentido moderno do termo. Se estabeleço tal aproximação histórica, não se trata, evidentemente, de dar a entender que o aspecto pastoral do poder desaparecido nos decurso dos dez grandes séculos da Europa cristã, católica e romana, mas me parece que, ao contrário do que se espera, este período não foi o do pastorado triunfante. E isso por diversos motivos: alguns são de natureza econômica - o pastorado das almas é uma experiência tipicamente urbana, dificilmente conciliável com a pobreza e a economia rural extensiva dos primórdios da Idade Média. Outros motivos são de natural cultural: o pastorado é uma técnica complicada, que requer certo nível de cultura - da parte do pastor assim como do seu rebanho. Outros motivos ainda têm a ver com estrutura sócio-política. O feudalismo desenvolveu entre os indivíduos um tecido de liames pessoais de uma espécie bastante diferente do pastorado.
Não pretendo que a idéia de governo pastoral dos homens tenha desaparecido inteiramente na Igreja medieval. Ela, na verdade, continuou, e se pode inclusive dizer que deu mostras de grande vitalidade. Duas séries de fatos tendem a prová-lo. Em primeiro lugar, as reformas que haviam sido realizadas no próprio interior da Igreja, em particular nas obras monásticas - as diferentes reformas acontecidas sucessivamente dentro dos mosteiros existentes - tinham por finalidade restabelecer o rigor da ordem pastoral entre os monges. Quanto às ordens apenas criadas - dominicanos e franciscanos - elas propunham-se antes de tudo efetuar um trabalho pastoral entre os fiéis. Durante suas crises sucessivas, a Igreja procurou incansavelmente reencontrar suas funções pastorais. Há mais, porém. Na própria população, assiste-se ao longo da Idade Média ao desenvolvimento de longa sucessão de lutas cujo objeto era o poder pastoral. Os adversários da Igreja que falta a suas obrigações rejeitam sua estrutura hierárquica e partem em busca de formas mais ou menos espontâneas de comunidade, na qual o rebanho poderia encontrar o pastor de que precisava. Esta busca de uma expressão pastoral reveste-se de numerosos aspectos: às vezes, como no caso dos Valdenses (N.T.: membros da seita fundada em Lião por Pedro Valdo, por volta de 1170, inspirada na pobreza evangélica, e que repudiava a riqueza da Igreja Católica), proporciona lutas de extrema violência; noutras ocasiões, como na da comunidade dos Irmãos da vida, tal quadro manteve-se pacífico. Ora suscitou movimentos de grande alcance, tais como o do Hussitas (N.T.: adeptos da doutrina de Jan Huss, tcheco, para quem as boas obras não contavam para a salvação eterna), ora fermentou grupos limitados, como naquela dos Amigos de Deus de Oberland. Trata-se ora de movimentos próximos da heresia (caso dos Begardos), ora de movimentos ortodoxos turbulentos fixados no interior da própria Igreja (caso dos oratorianos italianos no séc. XV).
Lembro tudo isso de modo bastante alusivo com o único objetivo de sublinhar que, se não era instituído como governo efetivo e prático dos homens, o pastorado foi na Idade Média o cuidado constante e o centro de lutas incessantes. Ao longo de todo este período manifestou-se um ardente desejo de estabelecer relações pastorais entre os homens, e tal aspiração afetou tanto a corrente mística quanto os grandes sonhos milenaristas.
Não pretendo tratar aqui do problema da formação dos Estados. Nem quero explorar os diferentes processos econômicos, sociais e políticos de que procedem. Por fim, não é intenção analisar os diferentes mecanismos e instituições de que os Estados se dotaram a fim de garantir a sua sobrevivência. Gostaria simplesmente de dar algumas indicações fragmentárias sobre algo que se encontra a meio caminho entre o Estado, como tipo de organização política, e seus mecanismos, a saber, o tipo de racionalidade em ato no exercício do poder de Estado.
Evoquei-o na minha primeira conferência. Mais do que se perguntar se as aberrações do poder de Estado são devidas a excessos de racionalismo ou de irracionalismo, seria mais judicioso, penso eu, ater-se ao tipo específico de racionalidade política produzido pelo Estado.
Antes de mais, pelo menos a este respeito, as práticas políticas assemelham-se às científicas: não é a "razão em geral" que se aplica, mas sempre um tipo bem específico de racionalidade.
O que é surpreendente é que a racionalidade do poder de Estado estava refletida e perfeitamente consciente de sua singularidade. Não estava fechada em práticas espontâneas e cegas, e não é alguma análise retrospectiva que a pôs em evidência. Foi formulada, em particular, em dois corpos de doutrina: a razão de Estado e a teoria da polícia. Estas duas expressões adquirem imediatamente sentidos estreitos e pejorativos, eu sei. Mas, durante os cerca de cento e cinqüenta ou duzentos anos que ocupa a formação dos Estados modernos, as mesmas conservam sentido mais amplo que hoje em dia.
A doutrina da razão de Estado tentou definir em que os princípios e os métodos de governo estatal diferem, por exemplo, da maneira em que Deus governava o mundo, o pai, sua família, ou um superior, sua comunidade.
Quanto à doutrina da polícia, ela define a natureza dos objetos da atividade racional do Estado; define a natureza dos objetivos que persegue, a forma geral dos instrumentos que utiliza.
É, portanto, deste sistema de racionalidade que gostaria de falar agora. Mas é preciso começar por duas afirmações preliminares: 1) tendo Meinecke publicado um livro dos mais importantes sobre a razão de Estado, falarei principalmente da teoria da polícia. 2) A Alemanha e a Itália enfrentaram sérias dificuldades para se constituírem em Estados, e foram estes dois países que produziram o maior número de reflexões sobre a razão de Estado e a polícia. Por isso, voltarei muitas vezes a textos italianos e alemães.
Comecemos pela razão de Estado, de que dou aqui algumas definições:
Botero: "Um conhecimento perfeito dos meios através dos quais os Estados se formam, se reforçam, duram e crescem".
Palazzo (Discurso sobre o governo e a verdadeira razão de Estado, 1606): "Um método ou uma arte permitindo descobrir como fazer reinar a ordem e a paz no seio da República".
Chemnitz (De ratione status, 1647): " Alguma consideração política necessária para todos os negócios públicos, os conselhos e os projetos, cuja única finalidade é a preservação, a expansão e a felicidade do Estado; com que finalidade se empregam os meios mais rápidos e os mais cômodos".
Fixemo-nos em alguns traços comuns destas definições.
1) A razão de Estado é considerada como uma "arte", ou seja, uma técnica que segue determinadas regras. Tais regras não dizem respeito apenas aos costumes ou às tradições, mas também ao conhecimento - ao conhecimento racional. Em nossos dias, a expressão razão de Estado evoca o "arbitrário" ou "a violência". Na época, porém, entendia-se por ela uma racionalidade própria à arte de governar os Estados.
2) Donde esta arte de governar tira sua razão de ser? A resposta a tal pergunta provoca o escândalo do pensamento político nascente. No entanto, ela é bastante simples: a arte de governar é racional se a reflexão a conduz a observar a natureza daquilo que é governado - no caso, o Estado.
Ora, proferir tal lugar comum significa romper com uma tradição ao mesmo tempo cristã e judiciária, tradição que pretendia que o governo era justo em sua raiz. Ele respeitava todo um sistema de leis: leis humanas, lei natural, lei divina.
Existe, a este propósito, um texto bastante revelador de Santo Tomás. Ele assinala que "a arte, no seu domínio, deve imitar o que a natureza cumpre no seu campo"; é razoável só sob esta condição. No governo do seu reino, o rei deve imitar o governo da natureza por parte de Deus; ou então, o governo do corpo pela alma. O rei deve fundar cidades exatamente como Deus criou o mundo ou como a alma dá forma ao corpo. O rei deve também conduzir os homens para a sua finalidade, assim como Deus o faz pelos seres naturais, ou como a alma o faz dirigindo o corpo. E qual a finalidade do homem? O que é bom para o corpo? Não. Só teria necessidade de um médico, não de um rei. A riqueza? Também não. Um administrador bastaria. A verdade? Nem isso. Para tal, só um mestre realizaria a tarefa. O homem precisa de alguém que seja capaz de abrir o caminho para a felicidade celeste conformando-se , aqui embaixo, ao que é honestum.
Conforme podemos observar, a arte de governar toma por modelo a Deus, que impõe suas leis às suas criaturas. O modelo de governo racional apresentado por Santo Tomas não é político, ao passo que, sob o nome de "razão de Estado", os séculos XVI e XVII procurarão princípios capazes de guiar o governo prático.. Não se interessam pela natureza nem por suas leis em geral. Interessam-se pelo que é o Estado, pelo que são suas exigências.
Assim podemos compreender o escândalo religioso suscitado por este tipo de pesquisa. Isso explica porque a razão de Estado foi confundida com o ateísmo. Na França, especialmente, tal expressão, presente em contexto político, foi comumente qualificada como "atéia".
3) A razão de Estado opõe-se também a outra tradição. Em O Príncipe, o problema de Maquiavel consiste em saber como se pode proteger, contra seus adversários internos e externos, uma província ou território adquirido por herança ou conquista. Toda a análise de Maquiavel procura definir o que mantém ou reforça o vínculo entre o príncipe e o Estado, ao passo que o problema posto pela razão de Estado é o da própria existência e da natureza do Estado. É por isso que os teóricos da razão de Estado se esforçam para ficar também o mais longe possível de Maquiavel; este tinha má reputação, e eles não podiam reconhecer o problema daquele como o próprio. Inversamente, os adversários da razão de Estado tentarão comprometer esta nova arte de governar, denunciando no mesmo a herança de Maquiavel. A despeito de querelas confusas, que se desenvolverão um século depois da redação de O Príncipe, a razão de Estado marca, por sua vez, o aparecimento de um tipo de racionalidade muito diverso - embora só em parte - daquele de Maquiavel.
O objetivo de tal arte de governar é precisamente o de não reforçar o poder que um príncipe pode exercer sobre seu domínio. Sua finalidade é a de reforçar o próprio Estado. Este é um dos traços mais característicos de todas as definições formuladas nos sécs. XVI e XVII. O governo racional resume-se, por assim dizer, a isso: dada a natureza do Estado, ele pode derrubar seus inimigos durante um período indeterminado. Não o pode fazer senão aumentando sua própria potência. E seus inimigos também o fazem. O Estado cujo único cuidado fosse o de durar acabaria certamente em catástrofe. Esta idéia é da maior importância e se costura com uma nova perspectiva histórica. De fato, supõe que os Estados são realidades que devem obrigatoriamente resistir durante um período histórico de duração indefinida no contexto de uma área geográfica contestada.
4) Por fim, podemos ver que a razão de Estado, no interior de um governo racional capaz de aumentar a potência do Estado de acordo com ele mesmo, passa pela constituição prévia de um determinado tipo de saber. O governo não é possível a não ser que a força do Estado seja conhecida; só assim pode ser mantida. A capacidade do Estado e os meios para as aumentar devem também ser conhecidas, assim como a força e a capacidade dos outros Estados. O Estado governado deve, portanto, resistir contra os outros. Assim, o governo não poderia limitar-se apenas à aplicação dos princípios gerais de razão, de sabedoria e de prudência. É necessário um saber: saber concreto, preciso e proporcional à potência do Estado. A arte de governar, característica da razão de Estado, está intimamente ligada ao desenvolvimento do que denominamos estatística ou aritmética política, ou seja, ao conhecimento das forças respectivas dos diferentes Estados. Tal conhecimento era indispensável ao bom governo.
Em síntese, a razão de estado não é uma arte de governar seguindo as leis divinas, naturais ou humanas. Este governo não precisa respeitar a ordem geral do mundo. Trata-se de um governo de acordo com a potência do Estado. É um governo cuja finalidade consiste em aumentar tal potência num quadro extensivo e competitivo.
O que os autores dos sécs. XVII e XVIII entendem por "polícia" é bastante diferente do que nós compreendemos com este termo. Valeria a pena estudar porque a maioria destes autores são italianos ou alemães, mas o que importa?! Por "polícia", eles entendem não uma instituição ou mecanismo que funciona no interior do Estado, mas uma técnica do governo própria do Estado: trata-se de domínios, técnicas, objetivos que pedem a intervenção do Estado.
Para ser claro e simples, ilustraria meu propósito por meio de um texto que contém ao mesmo tempo a utopia e o projeto. Trata-se de uma das primeiras utopias-programas de Estado policiado. Turquet de Mayerne a compôs e apresentou em 1611 aos estados gerais da Holanda. Em Science and Rationalism in the Government of Louis XIV , J. King chama a atenção para a importância desta estranha obra cujo título, Monarquia aristodemocrática, basta para mostrar o que conta aos olhos do autor: trata-se menos de escolher entre diferentes tipos de constituição, e mais de os combinar em vista de um fim vital: o Estado. Turquet denomina-a também Cidade, República, ou ainda Polícia.
Eis a organização que é proposta por Turquet. Quatro grandes dignitários secundam o rei. Um está encarregado da justiça; o segundo, do exército; o terceiro, do tabuleiro, a saber, dos impostos e dos recursos do rei; e o quarto, da polícia. Parece que o papel deste grande encarregado devesse ser essencialmente moral. Segundo Turquet, ele devia inculcar na população "a modéstia, a caridade, a fidelidade, a assiduidade, a cooperação amigável e a honestidade". Reconhecemos aí uma idéia tradicional: a virtude do sujeito é o penhor da boa administração do reino. Mas, quando entramos nos detalhes, a perspectiva se torna um pouco diversa.
Turquet sugere a criação, em cada província, de conselhos encarregados de manter a ordem pública. Dois cuidarão das pessoas; dois outros, dos bens. O primeiro conselho, que se ocupa das pessoas, devia cuidar dos aspectos positivos, ativos e produtivos da vida. Dito de outra forma, ocupar-se-ia da educação, determinaria os gostos e as aptidões de cada um e escolheria as profissões - as profissões úteis: cada pessoa de mais de vinte e cinco anos devia estar inscrito em registro que indicasse sua profissão. Aqueles que não estavam utilmente empregados eram considerados a ralé da sociedade.
O segundo conselho devia ocupar-se dos aspectos negativos da vida: dos pobres (viúvas, órfãos, velhos) necessitados; das pessoas sem emprego; daqueles cujas atividades exigiam ajuda pecuniária (e dos quais não se cobrava juro algum); mas também da saúde pública - doenças, epidemias - e de acidentes, tais como os incêndios e as inundações.
Um dos conselhos encarregados dos bens devia especializar-se em mercados e produtos manufaturados. Devia indicar o que produzir e como fazê-lo, mas também controlar os mercados e o comércio. O quarto conselho cuidaria do "domínio", ou seja, do território e do espaço, controlando os bens privados, os legados, as doações e as vendas; reformando os direitos senhoriais; ocupando-se das estradas, dos rios, dos edifícios públicos e das florestas.
Para muitos, este texto aparenta-se com as utopias políticas tão numerosas na época. Mas é também contemporâneo das grandes discussões teóricas sobre a razão de Estado e a organização administrativa das monarquias. É altamente representativo do que deviam ser, no espírito da época, as tarefas de um Estado governado segundo a tradição.
O que demonstra este texto?
1) A "polícia" aparece como administração dirigindo o Estado ao lado da justiça, do exército e do tabuleiro. Isso é verdade. No entanto, de fato ela abraça todo o resto. Conforme o explica Turquet, ela estende suas atividades a todas as situações, a tudo aquilo que os homens fazem ou empreendem. Seu domínio compreende a justiça, as finanças e o exército.
2) A polícia engloba tudo. Mas de um ponto de vista bem particular. Homens e coisas são vistas em suas relações: a coexistência dos homens no território; as suas relações de propriedade; o que eles produzem; o que se troca no mercado. Ela interessa-se também pela maneira como vivem, pelas doenças e pelos acidentes aos quais estão expostos. É de um homem vivo, ativo e produtivo que a polícia cuida. Turquet usa uma expressão notável: o homem é o verdadeiro objeto da polícia, afirma ele substancialmente.
4) Uma intervenção deste tipo nas atividades dos homens poderia muito bem ser qualificada de totalitária. Quais são os objetivos visados? Eles dependem de duas categorias. Em primeiro lugar, a polícia tem a ver com tudo o que diz respeito à ornamentação, à forma e ao esplendor da cidade. O esplendor não só se relaciona com a beleza de um Estado organizado com perfeição, mas também com sua potência, seu vigor. Assim, a polícia garante o vigor do Estado e o coloca em primeiro plano. Em segundo lugar, o outro objetivo da polícia consiste em desenvolver as relações de trabalho e de comércio entre os homens, sob o pretexto de ajuda e de assistência mútua. A palavra que Turquet usa neste caso ainda é importante: a política deve assegurar a "comunicação" entre os homens, no sentido amplo do termo. Sem isso os homens não poderiam viver; ou sua vida seria precária, miserável e estaria perpetuamente ameaçada.
Podemos reconhecer aqui, creio eu, uma idéia importante. Enquanto forma de intervenção racional exercendo o poder político sobre os homens, o papel da polícia consiste em lhes dar um pequeno suplemento de vida; fazendo isso, em dar ao Estado um pouco mais de força. Isso se faz pelo controle da "comunicação", isto é, das atividades comuns dos indivíduos (trabalho, produção, troca, comodidades).
Alguém poderia objetar: trata-se aqui apenas de uma utopia de algum autor obscuro. Daí não se poderia deduzir a menor conseqüência significativa! De minha parte, pretendo que tal obra de Turquet seja vista apenas como um exemplo da imensa literatura que circulava na maioria dos países europeus da época. O fato de ser excessivamente simples e muito pormenorizada evidencia com a maior clareza possível características que se podem reconhecer por todo lugar. Antes de tudo, diria que estas idéias não foram natimortas. Difundiram-se ao longo de todo o século XVII e do século XVIII, seja sob a forma de políticas concretas (tais como o cameralismo ou o mercantilismo), seja como matérias de ensino (a Polizeiwissenschaft alemã; não esqueçamos que sob tal nome era ensinada na Alemanha a ciência da administração).
Há duas perspectivas que gostaria, não de estudar, mas, pelo menos, de sugerir. Começaria referindo-me a um compêndio administrativo francês, depois a um manual alemão.
1) Todo historiador conhece o compêndio de De Lamare. No início do século XVIII, este administrador empreende a compilação dos regulamentos de polícia de todo o reino. È uma fonte inesgotável de informações do maior interesse. Meu propósito é aqui o de mostrar a concepção geral da polícia que tal quantidade de regras e regulamentos podia fazer nascer no caso de uma administrador como De Lamare.
De Lamare explica que há onze coisas das quais a polícia deve cuidar dentro do Estado: 1) a religião; 2) a moralidade; 3) a saúde; 4) os mantimentos; 5) as estradas, as pontes e calçadas, e os edifícios públicos; 6) a segurança pública; 7) as artes liberais (em geral, as artes e as ciências); 8) o comércio; 9) as fábricas; 10) os criados e os carregadores; 11) os pobres.
A mesma classificação caracteriza todos os tratados relativos à polícia. Como no programa utópico de Turquet, com exceção do exército, da justiça propriamente dita e das contribuições diretas, a política cuida aparentemente de tudo. Pode-se dizer o mesmo de forma diferente: o poder régio foi-se afirmando contra o feudalismo tanto graças ao apoio de uma força armada, quanto com o desenvolvimento de um sistema judiciário e com o estabelecimento de um sistema fiscal. É assim que se exercia tradicionalmente o poder régio. Ora, a "polícia" designa o conjunto do novo domínio no qual o poder político e administrativo centralizado pode intervir.
Mas qual é então a lógica por detrás da intervenção nos ritos culturais, nas técnicas de produção em pequena escala, na vida intelectual e na malha estradal?
A resposta de De Lamare parece um tanto hesitante. A polícia - precisa ele substancialmente - cuida de tudo que se relaciona com a felicidade dos homens, após o que ele acrescenta: a polícia cuida de tudo que regulamenta a sociedade (as relações sociais) que prevalece entre os homens. E por fim - garante - a polícia cuida da vida (vivant). É sobre esta definição que gostaria de me deter. É a mais original, e esclarece as duas outras; é De Lamare mesmo que insiste nisso. Eis quais são suas observações sobre os onze objetos da polícia. A polícia ocupa-se da religião, não, bem entendido, do ponto de vista da verdade dogmática, mas daquele da qualidade moral da vida. Cuidando da saúde e dos mantimentos, ela se preocupa em preservar a vida; tratando-se do comércio, das fábricas, dos trabalhadores, dos pobres e da ordem pública, ocupa-se com as comodidades da vida. Cuidando do teatro, da literatura, dos espetáculos, seu objeto não é senão os prazeres da vida. Em breve, a vida é o objeto da polícia: o indispensável, o útil e o supérfluo. Cabe à polícia permitir aos homens sobreviverem, viverem e melhorarem ainda mais.
Encontramos assim as outras definições que De Lamare propõe: o único objetivo da polícia consiste em conduzir o homem à maior felicidade de que o homem possa usufruir nesta vida. Ou ainda, a polícia cuida do conforto da alma ( graças à religião e à moral), do conforto do corpo ( sustento, saúde, vestuário, moradia), e da riqueza (indústria, comércio, mão-de-obra). Ou enfim, a polícia cuida das vantagens que só se podem tirar da vida em sociedade.
2) Lancemos agora um rápido olhar para os manuais alemães. Deviam ser utilizados um pouco mais tarde para ensinar a ciência da administração. Este ensino foi dispensado em diversas universidades, especialmente em Göttingen, adquirindo importância enorme para a Europa continental. É lá que foram formados os funcionários prussianos, austríacos e russos - aqueles que deveriam realizar as reformas de José II e de Catarina, a Grande. Alguns franceses, sobretudo nos círculos de Napoleão, conheciam muito bem as doutrinas da Polizeiwissenschaft .
O que encontramos nestes manuais?
No seu Liber de politia, Hohenthal distingue as seguintes rubricas: o número dos cidadãos; a religião e a moralidade; a saúde; a alimentação; a segurança das pessoas e dos bens (especialmente com relação aos incêndios e às inundações); a administração da justiça; as recreações e os prazeres dos cidadãos (como usufruí-los e como moderá-los). Segue depois uma série de capítulos sobre os rios, as florestas, as minas, as salinas e a moradia e, por fim, vários capítulos sobre os diferentes meios para adquirir bens através da agricultura, da indústria ou dos negócios.
Em seu Abrégé de la police, Willebrandt aborda sucessivamente a moralidade,as artes e profissões, a saúde, a segurança e, por último, os edifícios públicos e o urbanismo. No que diz respeito aos assuntos, mais ou menos, não há grande diferença com a lista de De Lamare.
De todos estes textos, porém, o mais importante é o de Justi, Éléments de police. O objeto específico da polícia continua sendo definido como a vida em sociedade de indivíduos vivos. Contudo, Von Justi organiza sua obra de maneira um pouco diversa. Começa estudando o que ele chama os "imóveis do Estado" ("bien-fonds de l'État"), ou seja, seu território. Focaliza-o sob dois aspectos: como é povoado (cidades e campo), em seguida, quem são seus habitantes (número, crescimento demográfico, saúde, mortalidade, imigração). Depois von Justi analisa os "bens e objetos de uso" ("biens et effets"), a saber, os produtos manufaturados, assim como sua circulação que toca problemas relativos a seu custo, ao crédito e à moeda. Por fim, a última parte é consagrada à conduta dos indivíduos: sua moralidade, suas capacidades profissionais, sua honestidade e seu respeito pela lei.
Na minha opinião, a obra de Justi é demonstração muito mais rebuscada da evolução do problema da polícia do que a introdução de De Lamare ao seu compêndio de regulamentos. Há quatro motivos para isso.
Primeiro, von Justi define em termos bem mais claros o paradoxo central da polícia. A polícia - explica ele - é o que permite ao estado aumentar seu poder e exercer sua potência em todo o seu alcance. Além disso, a polícia deve atender as pessoas felizes - a felicidade compreendida como a sobrevivência, a vida e uma vida melhor. Ele define perfeitamente o que considera a finalidade da arte moderna de governar, ou da racionalidade estatal: desenvolver os elementos constitutivos da vida dos indivíduos de tal maneira que seu desenvolvimento reforce também a potência do Estado.
Depois von Justi estabelece uma distinção entre esta tarefa, que, à semelhança de seus contemporâneos, chama de Polizei, e a Politik, Die Politik. Die Politik é fundamentalmente uma tarefa negativa. Ela consiste, para o Estado, em bater-se contra seus inimigos tanto do dentro quanto de fora. A Polizei, pelo contrário, é uma tarefa positiva: consiste em favorecer ao mesmo tempo a vida dos cidadãos e a força do Estado.
Tocamos aqui um ponto importante: von Justi insiste bem mais do que o faz De Lamare sobre uma noção que deveria adquirir importância crescente no curso do séc. XVIII - a população. A população era definida como grupo de indivíduos vivos. Suas características eram aquelas de todos os indivíduos pertencentes à mesma espécie, vivendo lado a lado. (Assim, caracterizavam-se pelas taxas de mortalidade e de fecundidade; eram sujeitos a epidemias e a fenômenos de superpopulação; apresentavam determinado tipo de distribuição territorial.) Assim, De Lamare emprega o termo "vida" para definir o objeto da polícia, mas ele não insistia para além da medida. Ao longo de todo o séc. XVIII, e sobretudo na Alemanha, é a população - ou seja, um grupo de indivíduos vivos em determinada área - que é definida como o objeto da polícia.
Finalmente, basta ler von Justi para dar-se conta de que não se trata apenas de uma utopia, como no caso de Turquet, nem de um compêndio de regulamentos sistematicamente elencados. Von Justi procura elaborar uma Polizeiwissenschaft. Seu livro não é mera lista de prescrições. É também uma grade através da qual se pode observar o Estado, a saber, seu território, seus recursos, sua população, suas cidades, etc. Von Justi associa a "estatística" (a descrição dos Estados) e a arte de governar. A Polizeiwissenschaft é, ao mesmo tempo, uma arte de governar e método para analisar uma população vivendo sobre um território.
Tais considerações históricas devem parecer estar muito distantes; devem parecer inúteis com relação às preocupações atuais. Não iria tão longe quanto Herman Hesse, que afirma que só é fecunda a "referência constante à história, ao passado e à Antigüidade". Mas a experiência me ensinou que a história das diferentes formas de racionalidade consegue às vezes abalar melhor nossas certezas e nosso dogmatismo do que uma crítica abstrata. Durante séculos, a religião não pôde suportar que se contasse sua história. Hoje, nossas escolas de racionalidade não apreciam muito que se escreva a história das mesmas, o que é sem dúvida significativo.
O que pretendi mostrar é uma direção de pesquisa. Aqui apresentei apenas rudimentos de estudo no qual trabalho há dois anos. Trata-se da análise histórica do que chamaríamos, usando expressão em desuso, a arte de governar.
Este estudo apoia-se em certo número de postulados de base, que resumiria da seguinte maneira:
O poder não é uma substância. Não é também um misterioso atributo de que precisaríamos esquadrinhar as origens. O poder não é senão um tipo particular de relações entre os indivíduos. E tais relações são específicas: por outras palavras, elas nada têm a ver com a troca, a produção e a comunicação, mesmo que lhes estejam associadas. O traço distintivo do poder é o de determinados homens poderem determinar, mais ou menos inteiramente, a conduta de outros homens - mas jamais de modo exaustivo e coercitivo. Um homem acorrentado e pisado está submetido à força que se exerce sobre ele. Mas não ao poder. Mas se for possível levá-lo a falar, quando seu último recurso teria podido ser o de manter sua língua, preferindo a morte, é porque se impeliu a comportar-se de um determinado modo. Sua liberdade foi sujeitada ao poder. Ele foi submetido ao governo. Se um indivíduo pode continuar livre, por mais limitada que possa ser sua liberdade, o poder pode sujeitá-lo ao governo. Não há poder sem rejeição ou revolta em potência.
No que diz respeito às relações entre os homens, muitos fatores determinam o poder. No entanto, a racionalização não cessa de perseguir sua obra e se reveste de formas específicas. Difere da racionalização própria dos processos econômicos ou das técnicas de produção e de comunicação; difere também do discurso científico. O governo dos homens por parte dos homens - tanto no caso de formarem grupos modestos ou importantes, quanto no caso de se tratar do poder dos homens sobre as mulheres, dos adultos sobre as crianças, de uma classe sobre a outra, ou de uma burocracia sobre uma população - pressupõe uma determinada forma de racionalidade, e não uma violência instrumental.
Conseqüentemente, os que resistem ou se rebelam contra uma forma de poder não conseguiriam contentar-se com a denúncia da violência ou com a crítica a uma instituição. Não basta acusar a razão em geral. O que é necessário questionar é a forma de racionalidade presente. A crítica do poder exercido sobre os doentes mentais ou sobre os loucos não deveria limitar-se às instituições psiquiátricas; de modo similar, os que contestam o poder de punir não deveriam contentar-se com a denúncia das prisões como instituições totais. A questão é: como são racionalizadas as relações de poder? Colocar tal questão constitui a única maneira de evitar que outras instituições, com os mesmos objetivos e os mesmos efeitos, tomem seu lugar.
Durante séculos, o Estado foi uma das mais importantes formas de governo humano, e também uma das mais temíveis.
Que a crítica política tenha acusado o Estado de ser ao mesmo tempo fator de individualização e princípio totalitário é bastante revelador. Basta observar a racionalidade do Estado nascente e ver qual foi seu primeiro projeto de polícia para darmo-nos conta de que, desde o seu início, o Estado foi, ao mesmo tempo, individualizante e totalitário. Contrapor-lhe o indivíduo e seus interesses é tão infeliz quanto contrapor-lhe a comunidade e suas exigências.
A racionalidade política desenvolveu-se e impôs-se ao fio da história das sociedades ocidentais. Enraizou-se inicialmente na idéia de poder pastoral, depois naquela de razão de Estado. A individualização e a totalização são seus efeitos inevitáveis. A libertação disso só pode vir do ataque, não a um ou outro destes efeitos, mas às próprias raízes da racionalidade política.
Texto original:
FOUCAULT, Michel. "Omnes et singulatim": vers une critique de la raison politique. In: Dits et Écrits 1954-1988, Vol. IV (1980-1988). Édition établie sous la direction de Daniel Defert et François Ewald, avec la collaboration de Jacques Lagrange. Paris, Gallimard, 1994, pp. 134-161. O texto resulta de conferências feitas pelo Autor em 1979, e publicadas como um artigo em 1981.
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