“A função do historiador é lembrar a sociedade daquilo que ela quer esquecer.” (Peter Burke)
sábado, 26 de fevereiro de 2011
VIAJANDO NO TEMPO
1937 - Luís Carlos Prestes é julgado pelo Supremo Tribunal Militar por crime de deserção. Condenado, ele ficaria preso até 1945.
A Revolta Vermelha de 1935 inscreve-se como conspiração de natureza político-militar, pelas suas reivindicações políticas imediatas (de protesto político-institucional contra um governo autoritário) dentro no quadro dos movimentos tenentistas realizados no Brasil desde a década de 1920. No entanto, articulou estas reivindicações, sob influência comunista, à ideia de uma revolução "nacional-popular" contra as oligarquias, o imperialismo e o autoritarismo, propondo, no seu horizonte de reivindicações menos imediatas, como: a abolição da dívida externa, a reforma agrária, o estabelecimento de um governo de base popular - em outras palavras, uma revolução "nacional-libertadora", que, embora estabelecida por um movimento armado, não se propunha a ultrapassar o quadro da ordem social burguesa (como afirmado, a época, por um dos líderes do movimento, o capitão Agildo Barata).
Esta confluência de influências corporificou-se na pessoa de seu principal líder, Luís Carlos Prestes, capitão do Exército Brasileiro e líder tenentista convertido ao comunismo, que dirigiu o levante - à revelia da liderança formal do Partido Comunista Brasileiro, e em articulação direta com a direção da Internacional Comunista, que mantinha junto a Prestes um grupo de militantes comunistas internacionais, composto pela companheira de Prestes, a comunista alemã Olga Benário, além do argentino Rodolfo Ghioldi, o alemão Arthur Ernest Ewert, Ranieri Gonzales e alguns outros militantes ligados ao Comitê Executivo da Internacional Comunista (CEIC).
A direita brasileira sempre caracterizou esta interferência no Comintern no movimento como prova do seu caráter antinacional, em que os militantes brasileiros teriam agido como simples fantoches do comunismo internacional. Deve-se levar em conta, no entanto, que, se o Comintern estalinista da época desejava levar a cabo uma revolução vitoriosa sob sua inspiração a qualquer custo - de forma a tirar de Stalin a pecha de "grande organizador de derrotas" que lhe havia sido atribuída por Trótski após o fracasso das revoluções na China em 1927, na Alemanha em 1923 e na tomada do poder por Hitler em 1933 - o fato é que Prestes especulou fortemente sobre o seu prestígio e sua capacidade de articulação política para prevalecer sobre a direção formal do Partido brasileiro - no processo marginalizando o então secretário-geral do Partido, Antônio Bonfim, o "Miranda" - e conseguir o apoio direto do CEIC a suas políticas - cujas premissas revelar-se-iam cabalmente equivocadas.
Num primeiro momento, Prestes parecia considerar que o programa nacionalista da ANL seria capaz de permitir-lhe impor-se como um movimento de massa legal capaz de atrair apoios tanto entre a classe operária e o campesinato como também entre a burguesia "progressista" de tendências anti-imperialista e antifascista - para depois, quando o governo Getúlio Vargas declarou a Aliança ilegal - com o apoio da burguesia e da classe média, que temiam a infiltração comunista no movimento - optar, com o apoio do CEIC, por uma ação revolucionária concebida em termos de de uma mera ação militar.
Destarte, verifica-se que a influência da IC no levantamento realizou-se estritamente dentro dos termos das tendências políticas autoritárias e burocratizantes do stalinismo, o que determinou que o movimento tivesse as características de uma conspiração militar típica, com pouca ou nenhuma articulação de base com as massas populares: daí os trotskistas brasileiros denominarem o movimento de putsch (golpe militar) de 1935.
O levante eclodiu em pontos esparsos do território nacional, a saber:
- em Natal e arredores, entre 23 e 25 de novembro;
- em Recife, a 25 de novembro; e
- no Rio de Janeiro, em 27 de novembro.
Fora de Natal, onde chegou a ser instalado um governo revolucionário provisório, o levante seguiu o padrão de um golpe militar clássico, limitando-se a ataques de militares rebeldes a quarteis. O último levante, no Rio de Janeiro, na Escola da Praia Vermelha e na Vila Militar, é considerado por alguns autores apenas como um ato de lealdade dos conspiradores sediados nessa cidade, pois havia ficado claro que o movimento não teria chances reais de revolucionar o país.
No Rio de Janeiro, as proporções do movimento foram mais amplas e cruéis, tendo sido deflagrado, simultaneamente, no 3º Regimento de Infantaria, na Praia Vermelha; no 2º Regimento de Infantaria e no Batalhão de Comunicações, na Vila Militar; e na Escola de Aviação, no Campo dos Afonsos. Os amotinados, companheiros de véspera, teriam, de acordo com a versão legalista, ferido e matado indiscriminada e covardemente seus companheiros que dormiam -versão esta que até hoje gera margem a dúvidas, já que os quartéis do Rio estavam em prontidão após os levantamentos revolucionários no Norte do País, e em tais circunstâncias seria extremamente difícil encontrar oponentes inermes a serem massacrados de tal forma. Seja como for, a luta foi atroz e sem quartel, com os insurretos tentando expandir a rebelião a todo custo, esbarrando na mais férrea resistência das forças legalistas, e -finalmente - perdendo a luta.
Por trás da estratégia equivocada do levante estava, de um lado, a superestimação que Prestes fazia de seu prestígio no interior do Exército brasileiro, de outro, a crença da IC de que, numa sociedade "semicolonial", bastaria proclamar o movimento para produzir uma sublevação espontânea que englobaria de militares a operários e "cangaceiros partisans [guerrilheiros](sic)".
O episódio mais dramático do levante comunista foi a tentativa de conquistar o Regimento de Aviação no Campo dos Afonsos, à época integrante do Exército (a Força Aérea Brasileira só seria criada em 1941), visando obter aeronaves para bombardear a cidade do Rio de Janeiro.
As unidades legalistas da Vila Militar, conseguiram instalar peças de artilharia para bombardear a pista e evitar que aviões decolassem. O assalto final foi realizado com uma carga de infantaria com apoio da artilharia, que retomou as instalações revoltadas.
Uma vez reprimido e derrotado , o movimento foi submetido a intensa desmoralização- a começar pelo nome pejorativo e desqualificante que recebeu ("Intentona", ou "intento louco") - por parte das cúpulas militares; como lembra o militar esquerdista Nélson Werneck Sodré nas suas memórias, a participação intensa de oficiais e suboficiais nas fileiras dos insurretos alertou o Exército para a necessidade de cerrar fileiras ideológicas, e de expurgar "influências exógenas" no interior da oficialidade militar nas três décadas seguintes. Tal cisão ideológica viria a expressar-se nas disputas políticas no interior do Clube Militar da década de 1950, no movimento dos sargentos da década de 1960, e daí até o Golpe de 1964, após o qual quaisquer traços de esquerdismo organizado foram eliminados das fileiras militares. Diferentemente dos golpes tenentistas, que haviam criado divisões temporárias entre legalistas e insurretos, superáveis posteriormente por anistias e reorganizações de carreira, o Movimento de 1935 criou uma clivagem político-ideológica até hoje não superada, em que os insurretos tiveram negada a sua própria condição de membros da corporação militar, com sua ação política sendo duradouramente criminalizada e estigmatizada como traição e ato hostil à hierarquia militar.
Até ao governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso, anualmente, na data de 27 de novembro, eram realizadas comemorações públicas pelo Exército brasileiro, no Cemitério São João Batista, no Rio de Janeiro, em homenagem aos militares legalistas mortos durante a intentona, que se caracterizavam pela intensidade das manifestações anticomunistas da cúpula militar a que davam oportunidade, daí terem sido interrompidas as solenidades quando do fim da Guerra Fria e da consolidação do regime constitucional restabelecido em 1985. O monumento aos mortos legalistas do movimento ergue-se na Praia Vermelha.
A repressão ao movimento permitiu que o Congresso Nacional decretasse o Estado de Guerra, com uma erosão decisiva nas liberdades e garantias individuais liberais-democráticas, o que preparou o caminho para que Getúlio Vargas decretasse o Estado Novo em 1937, reforçado pelo chamado Plano Cohen de 1937.
(MORAES, Denis de (org.) Prestes com a palavra: uma seleção das principais entrevistas do líder comunista. Campo Grande, Letra Livre, 1997.)
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