A Filosofia de Wittgenstein
Roger Scruton
l. A Origem da filosofia "Analítica"
Muito se tem escrito nos últimos anos sobre a vida e a filosofia de Ludwig Wittgenstein (1889-
1951). Atualmente, ele é considerado por muitos o filósofo mais importante de nosso século.
Todavia, é difícil enquadrar seu pensamento na história da filosofia, em parte devido à sua
iconoclasta posterior e, em parte, porque, como Frege, ele parte de reflexões que, à luz dessa
história, podem parecer provincianas e até mesmo desprovidas de qualquer importância
filosófica. Portanto, à guisa de introdução, é necessário dizer algo sobre o estado da filosofia
inglesa quando Wittgenstein veio a se interessar por ela. Tal interesse prenunciou a prolongada
influência que as idéias vienenses vieram a exercer sobre o pensamento angloamericano.
Devemos retroceder um pouco no tempo, até as doutrinas de Russell e Moore.
Bertrand Arthur, terceiro Conde Russell (I872-1970), tem sido até aqui associado à nova lógica,
por ele transformada em poderoso instrumento de análise filosófica. Não menos importante,
historicamente falando, foi seu amigo G. E. Moore (1873-1958), que escreveu importante
tratado sobre ética, o Principia Ethica (I903), e se opôs inexoravelmente a todas as formas de
especulação metafísica que parecessem subverter as verdades estabelecidas do senso comum.
Juntos, Moore e Russell dedicaram-se à demolição das doutrinas do idealismo britânico, como
foram apresentadas por Bradley (em Oxford) e J, M. McTaggart (1866-1925), em sua própria
Universidade de Cambridge. Russell, em sua obra inicial sobre os fundamentos da geometria,
reconhece a influência da Lógica de Bradley. Isso, porém, não o impediu de discernir, na
famosa prova do caráter provisório de objetos e qualidades proposta por Bradley (ver p. 235),
uma confusão entre o "é" da predicação e o "é" da identidade, ou de acusar Bradley e
McTaggart de prestidigitadores em quase todas as provas que ofereceram da inadequação de
nossas concepções de espaço, tempo e matéria baseadas no senso comum. Moore aderiu ao
combate, acrescentando mais asserções peculiarmente dramáticas do que argumentos. Fez a
seguinte pergunta: Como é possível que minha crença de que tenho duas mãos seja menos certa
que a validade de todos os argumentos filosóficos que se têm aduzido para refutá-la? A
combinação da volátil lógica de Russell com a vigorosa recusa de Moore a pensar além de seu
nariz ou de suas mãos mostrou-se extremamente destrutiva, tornando-se moda descrever a
metafísica idealista não como falsa, mas como sem sentido. Outros filósofos - notavelmente
Hume - tinham f eito afirmações semelhantes. No entanto, agora, mais do que nunca, parecia
possível provar o que fora dito, desenvolvendo-se uma teoria da estrutura da linguagem que
mostrasse precisamente o que podia e o que não podia ser dito. E supôs-se que, entre as coisas
que não podiam ser ditas, a metafísica era a mais facilmente reconhecível.
A primeira teoria desse tipo foi o atomismo lógico, prenunciado por Russell e expresso de modo
mais ou menos completo por Wittgenstein, em seu Tractatus Logico-Philosophicus (1921). Essa
obra, que chegou ao ponto de ser mais sucinta que a Monadologia de Leibniz, pretendia
responder de forma definitiva as questões da filosofia. Ao escrevê-la, Wittgenstein inspirou-se,
em parte, na famosa teoria das descrições, proposta por Russell e publicada num artigo que F. P.
Ramsey (I903-1930) descreveu como "paradigma de filosofia". Assim sendo, tal teoria servirá
como introdução adequada à obra de Wittgenstein.
2. A Teoria das Descrições
É estranho, e no entanto verdadeiro, o fato de uma das mais importantes publicações referentes
à filosofia moderna ter tido como objetivo aparente explicar o significado do artigo definido.
Russell pergunta: qual a diferença entre as sentenças "uma montanha de ouro existe" e ``a
montanha de ouro existe"? A primeira expressão é assim explicada pela nova lógica: o
predicado "montanha de ouro" é instanciado ou, de modo mais formal, existe um x tal que x é uma montanha de ouro. Essa proposição é obviamente falsa. Mas que dizer da segunda
proposição? Aqui, a palavra "o" parece transformar o predicado "montanha de ouro" naquilo
que Russell chamaria de expressão denotadora (e que Frege chamou de nome). Trata-se de um
estranho efeito da gramática, que tem uma conseqüência lógica ainda mais estranha, ou seja, a
de que a sentença parece referir-se a alguma coisa - a montanha de ouro. Mas como é isso
possível, se não existe montanha de ouro? Russell alegou que temos aqui um caso
paradigmático de uma forma gramatical que dissimula a forma lógica de uma sentença.
Tomando como exemplo sua própria definição e a implícita definição fregeana de números,
oferece uma definição implícita da palavra "o". Não podemos dizer explicitamente o que o
termo "o" denota, mas podemos mostrar como eliminá-lo de todas as sentenças em que ocorre.
Consideremos a sentença "o Rei da França é calvo". Para que isso seja verdade, deve existir um
rei da França e ele deve ser calvo. Ademais, para apreender o sentido distintivo da palavra "o",
devemos acrescentar que só existe um rei da França. As condições que formam a sentença
verdadeira conferem-lhe o significado; conseqüentemente, podemos dizer que "o Rei da França
é calvo" eqüivale à conjunção de três proposições: "existe um rei da França; tudo que é rei da
França é calvo; e só existe um rei da França''. (Mais formalmente - existe um x tal que x é um rei
da França e x é calvo, e, para todo y, se y é um rei da França, y é idêntico a x.) Essa análise levanos a concluir que, se não existe um rei da França, a sentença original é falsa. A expressão "o
Rei da França", que parecia uma expressão denotadora ou nome, de fato não é tal coisa, mas um
predicado associado a uma alegação existencial oculta. Como Russell assinala, o Rei da França
é uma ficção lógica (Podemos encontrar um antecedente histórico para esse tipo de teoria
filosófica na teoria benthamita das ficções.)
Filosoficamente falando, Russell se opôs a certos fenomenologistas (notadamente, Alexius
Meinong (1853-1920)), que pretenderam concluir que, se podemos pensar em algo como a
montanha de ouro, essa coisa deve, em certo sentido, existir. (Se o leitor não gosta da palavra
"existir', então se oferece outra palavra - "subsistir' - para não ferir suas delicadas
suscetibilidades lógicas.) Russell não chegou a compreender totalmente que Meinong e seus
companheiros se dedicaram menos à investigação da lógica da denotação que ao exame do
"objeto" intencional" do pensamento. Entretanto, seja como for, o argumento de Russell prestase à generalização imediata, proporcionando, nessa forma generalizada, uma base para a
filosofia do Tractatus.
3. 0 atomismo lógico e o Tractatus
De acordo com o Tractatus, tudo que pode ser pensado também pode ser dito. 0s limites da
linguagem são, portanto, os limites do pensamento, de modo que uma completa filosofia do " do
que pode ser dito" será uma teoria completa do que Kant denominara "o entendimento". Todos
os problemas metafísicos decorrem da tentativa de dizer o que não pode ser dito. Uma análise
apropriada da estrutura dos termos utilizados nessa tentativa mostrará tal coisa e, desse modo
solucionará ou diluirá problemas.
Então, qual é a estrutura da linguagem? Wittgenstein dividiu todas as sentenças em complexas e
atômicas, afirmando que as primeiras eram construídas a partir das segundas mediante regras de
formação que podiam ser interpretadas detalhadamente em termos da lógica de Russell. As
sentenças atômicas são aquelas que empregam os primitivos da linguagem` isto é, os nomes e
predicados elementares que, sendo indefiníveis, servem para distinguir (ou "descrever") o que
Wittgenstein chamou de fatos atômicos. Só uma proposição completa pode ser verdadeira ou
falsa e, por conseqüência, só uma proposição completa pode dizer-nos algo sobre o mundo.
Conseqüentemente, o constituinte mais básico do mundo é o que corresponde à sentença
atômica. Esse constituinte básico é o fato atômico, sendo o mundo, portanto, a totalidade de tais
fatos.Os fatos complexos correspondem às proposições complexas e, para compreender tais fatos
complexos, é necessário que compreendamos a complexidade da linguagem usada para
expressá-los. E essa complexidade é inteiramente proporcionada pela lógica fregeana e
russelliana. Assim sendo, "o Rei da França é calvo" é (embora não pareça) uma sentença
complexa, visto que sua verdadeira estrutura (ou seja, sua estrutura como representada pela
nova lógica) mostra que ela consiste em três sentenças incompletas, combinadas e completadas
pela quantificação e pelo conectivo "e". Muitas sentenças assemelham-se a essa. Parecem
básicas, mas, de fato, são complexas. Geralmente, muitas coisas a que nos referimos são
construções lógicas (ou ficções). As sentenças que as descrevem são abreviações de sentenças
mais complexas referentes aos constituintes de fatos totalmente diferentes, porém mais básicos,
em que essas "construções lógicas" não ocorrem. Uma sentença como "um homem médio tem
2,6 filhos" é realmente uma abreviação de uma sentença matemática complexa que relaciona o
número de filhos dos homens com o número de homens. "0 homem médio" não caracteriza
qualquer sentença atômica, ou seja, não nomeia qualquer constituinte da realidade. Pode-se
dizer o mesmo com relação à nação inglesa e a muitas entidades ``metafísicas" que
aparentemente têm suscitado problemas filosóficos. Wittgenstein foi menos específico que
Russell, e certamente menos específicos que os positivistas lógicos, para que, não obstante, o
Tractatus proporcionou todo um sistema de argumentação filosófica, no que se refere a que
fatos são atômicos e que fatos não o são. Ele pretendia enunciar claramente a estrutura lógica do
mundo, não se preocupando com seu conteúdo real.
A característica mais importante das sentenças complexas é que os conectivos usados para
construí-las devem ser "veri-funcionais", isto é, devem ser tais que o valor-de-verdade da
sentença complexa seja inteiramente determinado pelos valores de verdade de suas partes.
Trata-se do "princípio da extensionalidade, com o qual já nos deparamos ao discutir Frege e
que, de acordo com Wittgenstein, é uma precondição do pensamento e da análise lógicos. A
lógica ocupa-se apenas da transformação sistemática de valores-de-verdade; por conseguinte,
uma linguagem lógica deve ser transparente aos valores-de-verdade. Deve ser possível perceber
toda operação em termos da transformação da verdade e da falsidade. (A palavra "não" tem o
sentido de transformar a verdade em falsidade e a falsidade em verdade: a palavra "se", o de
tornar falsa uma sentença complexa se o antecedente é verdadeiro e o conseqüente, falso; caso
contrário, ela a torna verdadeira; e assim por diante.)
A noção de linguagem veri-funcional confere exatidão e força à alegação de Wittgenstein de
que há uma distinção real entre sentenças atômicas e não-atômicas. Ele é capaz de dizer não
apenas o que é a distinção, mas, o que é mais importante como somos capazes de compreendê-
la. Não é difícil para uma linguagem veri-funcional explicar de que modo a compreensão de
sentenças atômicas leva à compreensão de todos os complexos infinitos que podem ser
construídos a partir delas. (Essa é outra aplicação de um princípio de Frege que discutimos nas
pp. 247-48.) As condições-de-verdade de uma sentença complexa formada de maneira verifuncional podem ser extraídas imediatamente das condições-de-verdade de suas partes. E, em
conseqüência, se compreendermos as condições-de-verdade das partes, compreenderemos o
todo.
Além disso, Wittgenstein é capaz de proporcionar uma nova e aparentemente clara distinção
entre o necessário e o contingente, o analítico e o sintético, o a priori e o a posteriori. Tais
distinções reduzem-se à distinção entre verdade lógica e contingência. Uma sentença é uma
verdade lógica caso resulte verdadeira através da substituição, pelos termos, dos componentes
"primitivos" nela presentes. (Uma parte primitiva é aquela que não admite qualquer definição
ulterior. ) 0 paradigma de verdade lógica é a "tautologia" veri-funcional. Consideremos a
sentença "p 0o q". A definição de "ou" é: p ou q é falso se tanto p quanto q forem falsos e, em
caso contrário, verdadeiro. A definição de "não" é a seguinte: não-p é verdadeiro se p é falso, e
falso se p é verdadeiro. Isso quer dizer que a sentença "p ou não-p" é sempre verdadeira,
qualquer que seja o valor-de-verdade de "p". Desse modo não importa como substituímos o
termo primitivo "p", pois isso resultará sempre numa sentença verdadeira. As sentenças que assumirem tal forma são portanto, necessariamente verdadeiras, podendo ser consideradas
verdadeiras a priori por qualquer um que compreenda as operações lógicas da linguagem.
Para Wittgenstein, essa teoria da verdade necessária tem como conseqüência o fato de as
verdades necessárias serem vazias: nada dizem porque nada excluem. São compatíveis com
todo estado de coisas. 0 mundo é descrito pela totalidade das proposições atômicas verdadeiras;
estas são verdadeiras, mas, sendo atômicas, poderiam ser falsas, já que nada em sua estrutura
determina seu valor-de-verdade. Outra maneira de dizer isso é que os fatos existem no "espaço
lógica" que define as possibilidades; as sentenças atômicas verdadeiras descrevem o que é real,
enquanto as tautologias refletem propriedades do próprio espaço lógico.
Essa avaliação da linguagem suscita profundos problemas metafísicos. Em primeiro lugar, há o
problema da relação entre sentenças atômicas e fatos atômicos. Wittgenstein chama essa relação
de "figuração", e tal metáfora tem enganado muitos dos que tentam comentá-las. Ele também
diz que a relação não pode ser descrita, mas apenas mostrada; de fato, sua concepção era de que
se deve mostrar o que é mais básico; caso contrário, nunca poderíamos começar a descrição. E
não está claro exatamente o que ele quis dizer com "mostrar". Quiçá a melhor maneira de
compreender essa teoria - às vezes chamada de "teoria figurativa do significado" - seja negar,
para usar uma expressão ulterior de Wittgenstein, que podemos usar a linguagem "para nos
situarmos entre a linguagem e o mundo". Não podemos avaliar com palavras a relação entre um
fato atômico e uma proposição atômica, a não ser usando a proposição cuja verdade estamos
tentando explicar. Não podemos "pensar" no fato atômico sem pensarmos na sentença que o
"figura". Os limites do pensamento são os limites da linguagem. Wittgenstein conclui seu livro
com o lacônico enunciado: "o de que não se pode falar deve-se calar".
Um dos problemas com que a filosofia do Tractatus se depara reside nesse próprio
procedimento. Só as sentenças atômicas, os complexos veri-funcionais e as tautologias são
significativos. Mas que dizer da teoria que afirma isso? Ela não é sentença atômica, nem
complexo; não pretende dizer, como as coisa s são, mas como devem ser. Mas não é uma
tautologia. Então, é sem sentido? Wittgenstein realmente diz "sim", e com esse gesto ousado
aproxima-se da conclusão de sua doutrina, acrescentando que suas proposições devem servir de
escada a ser descartada pelos que por ela subiram.
4. Wittgenstein e a Análise Linguística
0 Tractatus possui um pouco da fascinação da primeira Crítica de Kant, ou seja, a fascinação de
um doutrina que, na medida do possível, luta para descrever os limites do inteligível, somente
para, ao fazê-lo, ser compelida a transcendê-los. Em momento algum Wittgenstein reconhece a
semelhança de seu pensamento com o de Kant, ou, de fato, com o de qualquer outro, exceto o de
Russell, mas a comparação entre os dois filósofos torna-se cada vez mais impressionante, de tal
modo que alguns têm considerado a argumentação de sua obra póstuma, intitulada Investigações
Filosóficas, o complemento final da Dedução transcendental de Kant.
A filosofia posterior de Wittgenstein desenvolveu-se a partir de uma reação à anterior, ou a
determinada interpretação dela extremamente influente. No Tractatus, a metafísica do atomismo
lógico é apresentada quase que sem referência a qualquer teoria específica do conhecimento. A
própria versão de Russell sobre a teoria era decididamente empirista, identificando os "fatos
atômicos" como relativos ao conteúdo imediato da experiência (ou dados sensoriais, como
Russell os chamou). Utilizando o aparato da teoria de Wittgenstein, Russell foi capaz de
reformular uma versão empirista com o espírito cético de Hume, propondo interpretar toda
entidade no mundo que não seja dado sensorial como "construção lógica". Caso de fato,
queiramos, ou não referindo-nos a tabelas referir-nos a construções lógicas a partir de dados
sensoriais, isso é tudo que, de acordo com Russell, podemos pretender. Como ele assinala,
"onde for possível, as construções lógicas devem ser substituídas por entidades inferidas". Desse
modo, a filosofia dá um passo na direção do positivismo lógico pelo qual todas as doutrinas metafísicas, éticas e teológicas são sem sentido, não devido a algum defeito do pensamento
lógico, mas por não poderem ser verificadas. 0 slogan do positivismo - o significado de uma
sentença é seu método de verificação - é tirado do Tractatus, como grande parte do aparato
mediante o qual se buscou livrar o mundo de entidades metafísicas. Mas estava imbuído do
mesmo espirito que Hume, e suas principais teorias eram reformulações das doutrinas humanas
concernentes à causalidade, ao mundo físico e à moralidade, em termos não de uma teoria
"genética" do significado, mas de uma teoria "analítica". A época em que tal programa estava
em andamento, com a obra de Rudolf Carnap (1891-1970) e outros pensadores do chamado
"Círculo de Viena" (ver especialmente a obra de Carnap intitulada Estrutura Lógica do Mundo,
1928), Wittgenstein renunciou totalmente ao atomismo e seus resultados, parou de publicar e
iniciou uma existência hermética e nômade, a que assegurou, até sua morte, que sua influência
se exercesse apenas sobre os que tiveram o privilégio de conhecê-lo pessoalmente ou que
chegaram a ver os manuscritos que ele ocasionalmente nos mostrou. 0 mais famoso desses
manuscritos - Os cadernos azuis e marrons - chegou a Oxford na década de 1940, precipitando a
escola de "análise lingüística", para a qual J. L. Austin (1911-60) e Gilbert Ryle ( 1900-1977 ) já
tinham preparado o terreno. No entanto, não discutirei essa escola, composta por tantas e tão
inexpressivas figuras que se caracteriza menos por abraçar qualquer doutrina que por ter-se
recusado a apoiar alguma delas. Nem tecerei considerações sobre o desenvolvimento ulterior do
positivismo lógico na América, onde realizou um casamento prolífico - através de Nelson
Goodman e Willard von Orman Quine, alunos de Carnap - com o "pragmatismo" local de C. S.
Peirce (1839-1914), William James (1842-1910) e C. I. Lewis (1883-1964). Ao contrário,
concluirei este Livro com um esboço de certas doutrinas expressas em Investigações filosóficas
(1953), As observações sobre os fundamentos da matemática (I956) e outras obras. Em virtude
do fato de se relacionarem diretamente com a história da filosofia tal como a tenho descrito até
aqui, essas doutrinas propiciarão alguma indicação, ainda que superficial, de até que ponto a
filosofia posterior de Wittgenstein tem transformado e até mesmo destruído a tradição de
investigação intelectual iniciada com Descartes.
5. O Segundo Wittgenstein
A ênfase da filosofia posterior de Wittgenstein é decididamente antropocêntrica. Embora ainda
estivesse centrada em questões concernentes ao significado e aos limites do proferimento
significante, seu ponto de partida se tornaram, não as imutáveis abstrações de um ideal lógico,
mas os esforços falíveis da comunicação humana. Ao mesmo tempo, o elemento humano não
seguiu a via usual da epistemologia, mas um caminho totalmente surpreendente. Wittgenstein o
introduz por meio de reflexões a priori sobre a natureza da mente humana e sobre o
comportamento social que dota essa mente de sua estrutura característica. O que é "dado" não
são os "dados sensoriais" dos positivistas, mas as "formas de vida" da antropologia filosófica
kantiana. Isso quer dizer que o objeto de qualquer teoria do significado e do entendimento é a
prática pública do proferimento e tudo que torna tal prática possível. Assim sendo, Wittgenstein
inicia suas investigações ulteriores sobre a natureza da linguagem no ponto em que Frege parou.
Ele aceita a tese do "caráter público" do sentido que já levara Frege a rejeitar as teorias
empiristas tradicionais do significado. Isso resultou não apenas em nova avaliação da natureza
da linguagem, mas também numa revolucionária filosofia da mente. Os problemas metafísicos
que Kant, Hegel e Schopenhauer tentaram resolver são re-expressos como dificuldades na
interpretação da consciência. Assim entendidos, repentinamente se afiguraram capazes de serem
resolvidos.
A perspectiva social levou Wittgenstein a afastar-se da ênfase fregeana no conceito de verdade
ou a considerar que tal ênfase reflete uma exigência mais fundamental, isto é, a de que o
proferimento humano seja responsável por um padrão de correção. Tal padrão não é dado por
Deus, nem jaz oculto na ordem natural, sendo um artefato humano, que tanto produz as práticas
lingüísticas que o regem quanto é por elas produzido. Isso não quer dizer que um indivíduo
pode decidir por si mesmo o que é certo e o que é errado na arte da comunicação. Ao contrário,
o constrangimento da publicidade refreia não somente cada um de nós, mas também todos nós; além disso, tal constrangimento está intimamente vinculado à concepção que fazemos de nós
mesmos como seres que observam um mundo independente e nele agem. Todavia, é verdade
que o único constrangimento envolvido no uso comum é o próprio uso. Se nos opomos a
verdades que nos parecem necessárias, tal se dá apenas porque fomos nós que criamos as regras
que as fazem ser assim; e também podemos abrir mão daquilo que criamos. A compulsão que
experimentamos na inferência lógica, por exemplo, não é compulsão, independentemente de
nossa disposição para experimentá-la.
Esse tipo de reflexão levou Wittgenstein a uma forma muito sofisticada de nominalismo: uma
negação que podemos localizar fora da prática lingüística para a coisa que a rege. Os fatos
últimos são linguagem e as formas de vida que se desenvolvem a partir da linguagem e a tornam
possível. O nominalismo não é recente, nem lhe têm faltado representantes em nossa época.
Nelson Goodman (nascido em 1906), por exemplo, tem defendidas, utilizando argumentos que
geralmente se assemelham aos de 'Wittgenstein, uma espécie de nominalismo que incorpora
toda uma filosofia da ciência a uma teoria do conhecimento. O que caracteriza Wittgenstein é a
transição que ele realiza no plano da articulação da filosofia da linguagem com a filosofia da
mente. Ao realizar tal transição, tenta subverter a principal premissa de quase toda a filosofia
ocidental desde Descartes - a premissa da "prioridade do caso da primeira pessoa".
Wittgenstein usa vários argumentos destinados a mostrar o que essa premissa realmente
significa e, ao fazê-lo, tenta demonstrar sua insustentabilidade. Ao serem reunidos, esses
argumentos proporcionam o que pode ser descrito como uma "figuração" da consciência
humana. Tal figuração possui muitos aspectos; alguns são metafísicos, outros, epistemológicos.
Ela envolve a rejeição da busca cartesiana da certeza, o aniquilamento da concepção de que os
eventos mentais são episódios privados que só podem ser observados pela própria pessoa e a
recusa de todas as tentativas de compreender a mente humana isoladamente das práticas sociais
por meio das quais ela encontra expressão. Nesta obra, é impossível apresentar todas as
considerações com que Wittgenstein sustenta ``a prioridade do caso da terceira pessoa".
Portanto, mencionarei apenas um ou outro item central da referida argumentação, extraindo
algumas conclusões com relação à importância histórica e filosófica da tese.
6. O Argumento da Linguagem Privada
O mais famoso argumento desenvolvido pela posição wittgensteiniana é o que veio a ser
conhecido como "o argumento da linguagem privada". Ele ocorre em diversas versões das
Investigações Filosóficas e tem sido objeto de muitos comentários. Parece-me que, em resumo,
o argumento é o seguinte: há um "privilégio" peculiar ou "imediatidade" envolvidos no
conhecimento das nossas próprias experiências atuais. Em certo sentido, é absurdo sugerir que
tenho de ou poderia descobrir estar equivocado a respeito delas no curso normal das coisas.
(Esse é o pensamento que também subjaz a tese kantiana da "Unidade Transcendental da
Apercepção", ver pp. 141-42. ) Isso tem resultado no que podemos chamar de "ilusão da
primeira pessoa". Posso ter mais certeza de meus estados mentais que dos seus. Isso só ocorre
porque observo diretamente meus estados mentais e, os seus, indiretamente. Quando vejo você
sentir dor, vejo o comportamento físico, suas causas, determinado estado complexo de um
organismo. Mas isso não é a dor que você sente, apenas algo que a acompanha de modo
contingente. A própria dor está oculta por sua expressão, só podendo ser diretamente observada
por aquele que a sofre.
Essa é, em suma, a teoria cartesiana do espírito, apresentada como explicação do caso da
primeira pessoa. Wittgenstein alega que tanto a teoria quanto aquilo que ela deve explicar são
ilusões. Suponhamos que a teoria fosse verdadeira. Wittgenstein afirma que, então, não nos
poderíamos referir a nossas sensações por meio de palavras inteligíveis numa linguagem
pública. Pois as palavras, numa linguagem pública, adquirem seu sentido publicamente, ao
serem associadas a condições publicamente acessíveis que asseguram sua aplicação. Tais
condições determinarão não somente seu sentido, mas também sua referência. Wittgenstein alega que a suposição de que essa referência seja privada (no sentido de, em princípio, só poder
ser observada pela própria pessoa) é incompatível com a hipótese de que o sentido é público.
Por conseguinte, se os eventos mentais são como Descartes os descreve, nenhuma palavra em
nossa linguagem pública poderia realmente referir-se a eles.
Contudo, realmente os cartesianos e sua progênie empirista têm sempre, intencionalmente ou
não, aceito essa conclusão e escrito como se cada um de nós descrevesse nossas sensações ~
outros episódios mentais atuais numa linguagem que, em virtude de seu campo de referência
ser, em princípio, inacessível a outros, só é inteligível para quem a usa. Wittgenstein opõe-se à
possibilidade de tal linguagem privada. Tenta provar que não pode haver diferença, para quem
fala essa linguagem, entre como as coisas lhe parecem e como elas são, pois ele perderia a
distinção entre ser e parecer. Entretanto, isso significa perder a idéia de referência objetiva. Na
realidade, não se visa de maneira alguma a linguagem; ao contrário, ela torna-se um jogo
arbitrário. O que parece certo é o que é certo; conseqüentemente, não se pode mais falar do
certo.
Isso leva a seguinte conclusão: não podemos referir-nos aos eventos mentais cartesianos
(objetos particulares) numa linguagem pública, nem nos referir a eles numa linguagem privada.
Em conseqüência, não podemos referir-nos a eles. No entanto, seria possível dizer que eles, não
obstante, podem existir! Wittgenstein opõe-se a tal possibilidade de um modo que faz lembrar o
ataque kantiano ao noumena, dizendo que um nada desempenhará a mesma função que um algo
sobre o qual nada se possa dizer. Ademais, podemos referir-nos a sensações; desse modo, o que
quer que sejam, as sensações não são eventos mentais cartesianos.
Wittgenstein faz acompanhar esse argumento de uma penetrante descrição, a partir do ponto de
vista da terceira pessoa, de muitos fenômenos mentais complexos – particularmente, os da
percepção, intenção, expectativa e desejo. E, como ele reconhece, seus argumentos, se bemsucedidos, refutam a possibilidade de uma "fenomenologia pura", visto que implicam que nada
se pode aprender sobre a essência do mental ou sobre a essência de qualquer coisa com o estudo
(em isolamento cartesiano) apenas cia primeira pessoa. A "imediatidade" do caso da primeira
pessoa é unicamente um indício de sua superficialidade. De fato, conheço meus próprios estados
mentais sem observar meu comportamento; mas isso não se deve ao fato de eu estar observando
algo mais. É simplesmente uma ilusão, suscitada pela autoconsciência, de que a autoridade
necessária que acompanha o uso público do "eu" é uma autoridade sobre alguma coisa da qual
só o "eu" possui conhecimento.
7. A prioridade da terceira pessoa
Apesar de ter rejeitado assim o "método" da fenomenologia, Wittgenstein manifestou, contudo,
simpatia para com uma postura teórica que se torna - mediante uma série de acidentes históricos
- aliada deste método. Pensadores como o kantiano Dilthey (ver p. 259) buscaram os
fundamentos de uma compreensão peculiarmente "humana", pela qual o mundo seria
considerado, não cientificamente, mas sob o aspecto do "significado". Como alguns
fenomenologistas, tais como Merleau-Ponty e Sartre, Wittgenstein argumentou que percebemos
e compreendemos o comportamento humano de maneira diferente daquela pela qual
percebemos e compreendemos o mundo natural. Explicamos o comportamento humano
apresentando razões e não causas. Dirigimo-nos ao nosso futuro tomando decisões e não
fazendo predições. Compreendemos o passado e o presente da humanidade por meio de nossos
objetivos, emoções e atividade, e não mediante teorias preditivas. Todas essas distinções
parecem suscitar a idéia;, se não de um mundo especificamente humano, pelo menos de um
modo especificamente humano de conceber as coisas. Grande parte da filosofia posterior de
Wittgenstein volta-se para a tarefa de descrever e analisar as características do entendimento
humano, bem como de aniquilar o que ele considerou a vulgar ilusão de que a ciência poderia
produzir uma descrição de todas essas coisas com as quais nossa humanidade (ou, para falar de
maneira mais filosófica, nossa existência como agentes racionais) está mesclada. Ele defende não somente a posição de que nosso conhecimento de nossas próprias mentes pressupõe o
conhecimento das mentes de outros, mas também a de que – como assinala o fenomenologista
Max Scheler (1874-1928) – "a convicção que temos da existência das mentes de outros é
anterior e mais profunda que nassa crença na existência da natureza". Em outras palavras,
apesar de ter atacado o método e a metafísica da fenomenologia, Wittgenstein compartilha com
os fenomenologistas o sentido de que há um mistério nas coisas humanas que não será revelado
pela investigação científica. Tal mistério não é dissipado pela explicação, mas apenas pela
cuidadosa descrição filosófica do "dado". Para Wittgenstein, a diferença reside no fato de que o
que é "dado" não é o conteúdo da experiência imediata, mas as formas de vida que tornam
possível a experiência.
A destruição da ilusão da primeira pessoa tem duas conseqüências. Em primeiro lugar, não
podemos iniciar nossas investigações a partir do caso da primeira pessoa e pensar que ela nos
proporciona um paradigma de certeza. Pois, considerada isoladamente, ela nada nos
proporciona. Em segundo lugar, embora a distinção entre ser e parecer não exista para mim no
momento em que contemplo minhas próprias sensações, isso só ocorre porque falo uma
linguagem pública que determina essa propriedade peculiar do conhecimento da primeira
pessoa. O colapso do ser e parecer é um caso "degenerado". Assim sendo, posso saber que, se
esse colapso é possível, é porque há outras pessoas no mundo além de mim e porque tenho em
comum com elas uma natureza e uma forma de vida. De fato, habito um mundo objetivo em que
as coisas são ou podem ser diferentes do que parecem. Desse modo, de maneira surpreendente,
o argumento da Dedução Transcendental de Kant acaba fundamentado. A precondição do
autoconhecimento (da Unidade Transcendental da Apercepção) é, afinal de contas, o
conhecimento dos outros e do mundo objetivo que os contém.
Muita coisa mudou na filosofia desde que Wittgenstein produziu seus argumentos, e muita coisa
não mudou. Entretanto, de uma coisa se pode ter certeza. A suposição de que existe a certeza da
primeira pessoa, que proporciona um ponto de partida para a investigação filosófica e que levou
ao racionalismo de Descartes e ao empirismo de Hume, bem como a grande parte da
epistemologia e da metafísica modernas, foi finalmente deslocada do centro da filosofia. A
ambição de Kant e Hegel de obter uma filosofia que remova o "eu" [self ] do limiar do
conhecimento; de modo a finalmente transformá-la numa forma enriquecida acabada, talvez
tenha sido agora realizada.
© Roger Scruton, filósofo inglês e escritor.
Observação.
Texto cedido ao Centro de Estudos em Filosofia Americana para tradução e divulgação. Para cópia e
divulgação, basta informar a propriedade do CEFA, a fonte e o tradutor. Pedimos a gentileza de
comunicar ao CEFA a utilização do texto: Fran: fghi29@yahoo.com.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário