Antisthenes ou o caminho da loucura
Portal Brasileiro da Filosofia
Artigo de Paulo Ghiraldelli Jr.
Diógenes de Sinope nada mais é que Sócrates tornado louco. Na historiografia da filosofia essa caracterização de Diógenes é comumente atribuída a Platão. E se entre Diógenes e Sócrates houve apenas um filósofo, Antísthenes, então ele teria sido a porta para a loucura.
Mas o que era essa loucura? Certamente, uma única: a da parrhesia. Parrhesia é a liberdade que desemboca na franqueza; é o discurso aberto, o comportamento franco – a franqueza levada a tal extremo que se torna incômoda aos costumes estabelecidos. Uma loucura? Michel Foucault a estudou analiticamente e mostrou suas características em Sócrates e na escola fundada por Antísthenes e desenvolvida por Diógenes: a da filosofia cínica. Foucault fez questão de frisar que a parrhesia dos cínicos era a da filosofia comportamental e, portanto, não necessariamente escrita.[1]
Mas para quê a parrhesia? Uma exposição de idiossincrasias, como a de se masturbar em público ou de comer nu na Agora – tudo que foi apontado como sendo próprio de Diógenes? Não. Nada havia de tolamente idiossincrático em Diógenes, por mais que assim parecesse. Seu comportamento afrontoso não era devido a uma loucura simples. Muito menos Diógenes era um mero homem esquisito, alguém que passaria para a história para alimentar a idéia comum que é feita do filósofo, como necessariamente excêntrico (imagem reforçada por alguns que são antes professores de filosofia que filósofos). Seu comportamento era o de “Sócrates tornado louco”, o que é bem diferente de qualquer outra “loucura”. E de fato Foucault não mostrou a parrhesia apenas como uma forma de afrontar os costumes estabelecidos; não era exclusivamente uma maneira de criar entre os observadores um estranhamento em relação ao status quo. Isso seria o comum a toda e qualquer outra forma de filosofia. Que doutrina digna do nome de filosofia seria capaz de não escandalizar? Diógenes não era o que nós, hoje, poderíamos chamar de um subversivo apenas. O que os cínicos fizeram tinha um componente técnico no campo filosófico. Eles inventaram um novo modo de produção da verdade.
A verdade é encontrada ou fabricada? Eis aí um debate metafísico de séculos. Os cínicos não entraram por esse debate, eles assumiram que fosse a verdade encontrada ou fabricada, decidir isso era de menos importância do que fazê-la aparecer. Assim, o comportamento fora dos padrões (eles odiavam a convenção, e opunham a ela a vida natural) servia exatamente para criar a situação de constrangimento não só dos presentes, mas da própria verdade. Esse comportamento não era apenas produzido por eles, era também algo que poderia aparecer espontaneamente, e apenas incentivado no momento exato – propício.
Richard Rorty escreveu que se cuidássemos da liberdade a verdade cuidaria de si mesma. Isso era um pouco o que os cínicos pensaram, mas eles não desenvolveram qualquer reflexão sobre isso. Eles simplesmente se aproveitaram da liberdade para ver se a verdade punha sua cabeça para fora. Assim, todas as vezes que puderam ser francos ao extremo, fazendo então a radicalização da parrhesia, eles não deixaram por menos. Os que estavam em volta do fato criado é que deveriam avaliar o quanto a verdade teria aparecido ou teria sido ali produzida, no momento.
Os atos de condução da parrhesia por Diógenes sempre foram afrontosos. Mas não é necessário tanto para a parrhesia. Um exemplo que me vem à mente é dos tempos atuais, e funciona nesse exato sentido da parrhesia. O presidente do Irã Mahmoud Ahmadinejad esteve em uma universidade americana (Columbia). Em uma palestra, foi questionado sobre o tratamento ameaçador contra homossexuais no Irã. Sua resposta foi a de que “no Irã não temos esse fenômeno, o homossexualismo”. A platéia gargalhou e em seguida vaiou – mas de forma contida – o presidente. Estava ali a situação da verdade. Como que ele caiu em tal esparrela? Simples: ele não estava acostumado a falar para uma platéia livre. Havendo liberdade, a verdade cuidou de si mesma. O riso foi elemento de parrhesia.
Essa situação vivida pelo presidente do Irã e pelos estudantes americanos (documentada no Youtube) tem uma similaridade com as atitudes de Diógenes e dos cínicos em geral. Quando Alexandre encontrou Diógenes, perguntou a ele o que queria. Diógenes estava diante do grande e jovem imperador. Além disso, tendo sido pupilo de Aristóteles, Alexandre não estava ali oferecendo esmolas, estava realmente interessado em Diógenes, querendo lhe dar condições materiais para continuar sendo filósofo. No entanto, a resposta de Diógenes foi desconcertante: quero que me deixe tomar Sol. Alexandre estava na frente do Sol, fazendo sombra sobre o rosto de Diógenes.
Essa é a loucura – a parrhesia. Não raro, um imperador é tomado como o sol. Há inúmeras metáforas sobre tal relação, a do poderoso chefe de Estado e o Sol. Diógenes mostra que ele prefere antes a luz do Sol real que a do Imperador, vinda em forma de qualquer benefício. Afinal, não teria o filósofo a melhor capacidade de contato com a luz – a verdadeira luz, a da sabedoria, e não a luz da riqueza ou do poder dos homens? Caso Alexandre quisesse fazer algo por ele, que não interrompesse o seu contato com a luz – este é o recado de Diógenes. O jogo entre o literal e o metafórico se entrelaça com a situação de desconforto ali criada, uma vez que, por qualquer forma, o comportamento extremamente franco diante do Imperador se fez presente sem qualquer atenuante.
Diógenes podia ter deixado passar o caso, não aceitando qualquer favor e, no entanto, mantendo uma solicitude diante do Imperador? Não! Seria o mesmo que pedir para os estudantes de Colúmbia não rirem diante da afirmação do presidente do Irã. O momento da parrhesia é quase que impossível de ser contido na situação de liberdade.
A verdade não está no que é apontado pelo conceito e nem no conceito, dizia Theodor Adorno. Então, nesse sentido, a parrhresia realmente é o melhor método para a verdade. A verdade é o que está na situação propícia para a franqueza. Mas ela não surge de o filósofo não dá continuidade à situação, por meio de sua intervenção.
Volto a Antisthenes.
Diógenes reclamava de Antísthenes, pois o achava por demais suave. Mas Antísthenes não estava errado. O cinismo não necessariamente implica na idéia do “Sócrates tornado louco” quando imaginamos que o “tornado louco” é o “tornado excêntrico”. Para Antístenes, como conta Diógenes Laércio, seguir a vida virtuosa não implicava em superar Sócrates, mas apenas seguir seus passos na mesma linha traçada pelo ateniense.
Vinte e cinco anos mais jovem que Sócrates, Antisthenes se tornou seu discípulo e um amigo muito presente. Percorria um longo caminho, todos os dias, para se encontrar com Sócrates. Escreveu sobre vários assuntos, mas deu preferência aos problemas de linguagem e de ética. Neste último caso, Antistenes inovou em relação a Sócrates – o que de fato foi necessário para criar o cinismo: ele não igualou ética e legalidade.
Sócrates igualou ética e legalidade. Talvez não de modo absoluto, mas assim o fez no Crito, quando colocou as Leis para falar, mostrando ao discípulo que ele deveria seguir a sentença de morte, não deveria fugir, não deveria romper com as Leis de Atenas. Dar as costas às Leis de Atenas seria uma traição, uma vez que, até então, ele havia se aproveitado das Leis para ganhar a proteção, a cidadania ateniense – e todos os benefícios desta. Desconsiderar as Leis seria romper com o ethos. Diferentemente, Antísthenes começou a estabelecer uma separação entre as esferas do legal e do ético. É claro que isso se deveu ao cosmopolitismo do período helênico posterior a Sócrates. Os filósofos posteriores a Sócrates foram menos apegados do que ele ao amor à comunidade local, a Polis. Mas no que Antisthenes fez nesse sentido, ele abriu caminho para que o cinismo se tornasse uma escola de liberdade – uma liberdade diferente daquela advogada por Sócrates.
É exatamente no âmbito dessa ampliação do cosmopolitismo que a liberdade dos cínicos se colocou distintiva. Antisthenes e outros deram atenção especial a eleutheria (liberdade – não escravidão, portanto) e à autarkeiaparrhesia. Liberdade de discurso, discurso franco e, no limite, o que chamamos de “liberdade de expressão”. Pode-se dizer, portanto, que os cínicos foram os filósofos que tomaram a noção de liberdade em seus três sentidos positivos, diferentemente de outras escolas gregas, que em geral se fixaram em um dos três sentidos. Os estóicos, por exemplo, centraram atenção na autarkeia, enquanto que os epicuristas preferiram esta e, é claro, a eleutheria. Os cínicos foram os filósofos da parrhesia. (liberdade no sentido de poder governar-se a si mesmo; autocontrole). Todavia, a liberdade que distinguiu sua prática da de outros filósofos, e que ficou caracterizada como sendo própria dos cínicos, foi a apresentada pelo termo
Diógenes Laércio conta sobre um diálogo entre Platão e Diógenes de Sinope envolvendo essas três liberdades. Em uma só frase e situação as três liberdades se apresentam. O ocorrido poderia muito bem ser aplicado a uma conversa levada adiante por Antisthenes, um homem mais devotado a desenvolver situações menos rudes que as criadas por Diógenes. Platão viu Diógenes lavando legumes para comer, e então foi até ele e disse: “se tivesse dado a devida atenção a Dionísio (o rei) não estaria lavando legumes”. E Diógenes respondeu prontamente: “se você tivesse lavado legumes, não estaria tendo de dar a devida atenção a Dionisio”.
Antisthenes considerou o feixe das três liberdades como o modo próprio de conduzir sua guerra ao que era “por convenção” e não “por natureza”. Essa luta contra o “convencionalismo” foi uma marca de todos os cínicos. Ela esteve na base de uma doutrina que, apegando-se ao “por natureza”, se entendia como distinta da doutrina cética, que teria levado a sério demais o que seria “por convenção”. Então, por essa via, os cínicos se distanciaram de outra escola mais ou menos contemporânea, além da do episcurismo e estoicismo, a escola cética que se desenvolveu no interior da Academia de Platão, após a morte deste.
© 2009 Paulo Ghiraldelli Jr., filósofo
[1] Ghiraldelli Jr., P. História da filosofia. São Paulo: Contexto, 2008, vol. 1. Este texto tem por referência este livro.
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